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    Ilustração: Paula Cardoso

questões monetárias

A história secreta do lobo-guará

As idas e vindas do Banco Central até a decisão de lançar a nota de 200 reais

Sergio Leo | 09 out 2020_15h13
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Documentos classificados como sigilosos para evitar “risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País” fazem parte dos arquivos oficiais sobre a transformação do lobo-guará em moeda circulante no Brasil. A história secreta das cédulas de 200 reais, recém-lançadas com a imagem do simpático canídeo sul-americano, incluiu também um intenso e discreto trabalho do Banco Central para evitar uma corrida injustificada de saques nos bancos, que chegou a ser temida no governo. Na saga do lobo-guará há espaço até para combatentes do crime; no caso, associações de combate ao uso criminoso de dinheiro em espécie.

Deu mais trabalho do que pode parecer o improvisado lançamento da cédula, anunciado em julho deste ano, na contramão do que o próprio governo indicava no ano passado. Em 24 de junho de 2019, em resposta a demandas de associações preocupadas com o uso de dinheiro em espécie por criminosos, o Banco Central chegou a confirmar “estudos em andamento” para a possível extinção da maior nota, na época, a de 100 reais, em cuja superfície flutua uma garoupa – escolhida nos anos 1990 por um de seus criadores, praticante de pesca de mergulho.  

A extinção da cédula dificultaria a guarda e transporte de altos valores, no esforço de “combate à corrupção, à sonegação fiscal, à lavagem de dinheiro, à ocultação e evasão de divisas”. Mas, segundo informou o BC à piauí, como os estudos concluíram “pela inviabilidade” da medida, foi garantida a preservação da garoupa no meio circulante.

Em abril, com a pandemia da Covid-19, entrou em vigor a lei aprovada no Congresso com o auxílio emergencial de 600 reais, por três meses, para desempregados, microempreendedores e trabalhadores informais, grandes prejudicados pela quarentena. Em julho, o Conselho Monetário Nacional sacramentava a decisão de lançar a nota de 200 reais, que argumentou ser indispensável para atender, sem problemas, aos beneficiados pelo que ficou conhecido como “coronavoucher”.

Ao anunciar o novo bicho no meio circulante nacional, após reunião do CMN, em agosto, a diretora de Administração do Banco Central, Carolina de Assis Barros, explicou que a medida seria, também, uma reação “preventiva” à tendência verificada no país durante a pandemia de “entesouramento” de papel moeda. O BC diz ter percebido já em abril, no início da quarentena, uma demanda da população por cédulas e moedas “acima dos padrões históricos”.

A autoridade monetária não revela o valor das cédulas que, uma vez sacadas no sistema bancário, voltam aos bancos e são postas novamente em circulação; mas técnicos afirmaram à piauí que esse retorno passou a ser, a partir de abril, equivalente a menos de 30% do volume anterior. A retenção de dinheiro fora dos bancos levou o BC a usar, para abastecer o mercado, o estoque de segurança mantido em seus cofres, e a correr para encomendar à Casa da Moeda a antecipação da entrega das notas já compradas.

Para garantir que nenhuma agência ou caixa bancário ficasse sem abastecimento, a diretora Carolina Barros e assessores passaram a ter reuniões diárias, no início do expediente, que prosseguem até hoje, com executivos do Banco do Brasil e da Caixa. Segundo o BC, a quantidade de reais em circulação, com o público ou os bancos, chegou a 281 bilhões de reais em 2019 e deveria, nos planos da autoridade monetária, subir para 301 bilhões, em 2020; mas, no fim de julho, esse volume já estava em 342 bilhões. O governo previa dificuldades em suprir a demanda e ainda cobrir as novas necessidades criadas pelo auxílio emergencial e outras medidas contra a pandemia, como os saques de contas do FGTS.

Outras razões alegadas para a emissão da nova cédula brasileira estão em dois documentos classificados como “reservados”, vedados ao público até agosto do próximo ano: são a Nota Técnica 329/2020 do departamento do Meio Circulante do Banco Central e o voto BC 174/2020, que fundamentaram a decisão sobre o lobo monetário, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Em razão do sigilo, o voto 211, assinado pela diretora Carolina Barros, só pode ser lido com trechos “tarjados”, suprimidos ao público, que escondem parte da argumentação técnica no pedido de verbas para imprimir mais notas de 100 e as de 200 reais.

O BC aumentou em 114 milhões de reais seus gastos para produzir 174 milhões de cédulas de 100 reais e 450 milhões de unidades das novas cédulas de 200 reais. Estas ganharam o mesmo tamanho que as atuais notas de 20 reais (habitadas pelo mico-leão-dourado), sob o argumento de ganhar tempo e ocupar, sem necessidade de maiores adaptações, parte da capacidade de produção da Casa da Moeda destinada a cédulas de menor valor.

Executivos do BC garantem que não faltou dinheiro para garantir os saques em nenhum momento, mas temeu-se que alguma falha momentânea, em algum ponto da rede bancária, pudesse gerar boatos, pânico e corrida às contas. Esse temor foi relatado pelo próprio presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a ex-executivos do Banco Central, a quem procurou, num périplo discreto de relações públicas em defesa da nova cédula. No meio financeiro, muita gente estranhou a medida num momento em que se discute, no exterior, eliminação de cédulas de alto valor para reprimir seu uso por criminosos.

À piauí, o Banco Central argumentou, por e-mail, que os documentos secretos têm “informações sensíveis relacionadas ao monitoramento do meio circulante, incluindo dados obtidos de instituições reguladas, e informações sobre medidas ainda em planejamento ou em curso”. A divulgação “antecipada ou descontextualizada” dessas informações mais detalhadas “poderia causar risco à adequada execução de políticas públicas”.

A decisão de emitir uma cédula de valor superior a 100 reais surpreendeu também executivos do Banco Central ligados ao combate à lavagem de dinheiro. E irritou dirigentes de associações dedicadas ao tema, que apoiaram a ação dos partidos Podemos e PSB e Rede, no Supremo Tribunal Federal, contra a circulação do lobo-guará em forma de cédula. A ação, em análise pela ministra Cármen Lúcia, não teve decisão até hoje.

O BC enviou à ministra uma justificativa para a decisão sobre o lobo-guará, em que detalha a pressão para emissão de cédulas, e informa, que, com o aumento dos saques e queda no retorno de dinheiro aos bancos, só os saques previstos na Caixa chegaram a mais de 2 bilhões de reais em dinheiro vivo entre meados de julho e o fim de agosto, de 5 bilhões semanais a partir daí, até o início de outubro, quando a demanda deveria cair para algo entre 4 bilhões a 3 bilhões de reais, até o fim do ano.

Pouco frequentes no dia a dia das pessoas comuns, que mais necessitam de dinheiro em espécie, as cédulas de 100 reais somavam no fim de 2019 cerca da metade do valor em reais de todas as cédulas brasileiras em circulação ou guardadas nos bancos, o que levou um ex-presidente do BC, Gustavo Franco, a publicar artigo reforçando os argumentos contrários às notas de valor mais alto, inclusive essas, de 100 reais. Amparado nos dados sobre o chamado meio circulante, Franco defendeu que – como notou nos Estados Unidos o economista Kenneth Rogoff –  a demanda por cédulas “grandes”, no Brasil, está, principalmente, “ou na informalidade ou no crime”.

A conclusão de Franco e Rogoff é endossada por organizações como a Europol, que reúne entidades policiais da União Europeia no combate ao crime transnacional. “Simplesmente, quanto maior o valor da nota, mais fundos podem ser arrumados em menor espaço”, diz um relatório de 2015 da organização ao criticar a emissão de cédulas de “alta denominação”, preferencialmente usadas por criminosos, na avaliação dos especialistas. Ao argumento do governo de que o valor das notas brasileiras representa uma fração do valor das cédulas maiores no exterior, os críticos respondem que a renda média do brasileiro também é proporcionalmente inferior à da população desses países.

O governo calcula que acabar com as notas de 100 reais e substituí-las por cédulas de menor valor aumentaria o custo anual com produção de numerário, de 900 milhões de reais para 1,76 bilhão de reais. Essa substituição, além de incompatível com a capacidade instalada de produção da Casa da Moeda e fabricantes internacionais, “traria sérios problemas logísticos para todo o sistema de distribuição de numerário no Brasil, desde a Casa da Moeda até os milhares de caixas eletrônicos”, com “risco de desabastecimento da população”, afirmou o Banco Central à piauí. No Brasil, lembra o BC, transações financeiras em dinheiro vivo são a maioria, e ainda há grande quantidade de pessoas sem acesso ao sistema bancário, que exigem papel moeda para realização de transações financeiras. 

Mas os inimigos do dinheiro ilícito não se convencem com esses argumentos. Acreditam que o governo perdeu uma boa oportunidade de acelerar o uso de dinheiro digital no país, já que foram digitalizadas na quarentena atividades antes só realizadas com contato físico. “Quem está guardando dinheiro no colchão? Será que pessoas de renda alta tiram caminhões de dinheiro e botam em casa?”, pergunta a economista Maria Cristina Pinotti, especialista em combate à corrupção, para quem o lobo-guará anda na direção contrária de inovações introduzidas pelo próprio Banco Central, como o recém-lançado PIX, que permitirá a realização instantânea de transações financeiras por meio eletrônico, com a facilidade com que pessoas pobres fazem, hoje, recarga de créditos em um celular.

“Especialmente em tempo de campanha eleitoral, a dificuldade de rastrear dinheiro fica muito prejudicada com essas cédulas de alto valor”, reforça o cientista político Marcelo Issa, da Transparência Partidária, uma das ONGs da coalizão que discutiu com o BC o fim das notas de 100 reais. Incomodado com a falta de decisão sobre a ação contra a nota de 200 reais movida pelos partidos no STF, Issa não se mostra convencido pelos argumentos levados pelo Banco Central à ministra Cármen Lúcia, de que as preocupações com o uso criminoso da nova cédula podem ser atendidas com medidas já tomadas pelas autoridades, como o recente reforço do controle sobre depósitos e saques bancários. 

“A gente está falando de transações feitas pela criminalidade fora do sistema bancário, em dinheiro vivo, e, de preferência em cédulas com maior valor”, argumenta. Sua ONG e mais outras dez, entre elas associações de funcionários dos tribunais de contas, enviaram carta à ministra Cármen Lúcia, acusando as explicações do Banco Central de insuficientes para justificar o lobo-guará de alto valor.

“Evasão fiscal, terrorismo, tráfico de drogas, corrupção, evasão de divisas, a lista de crimes que não se limitam a lavagem de dinheiro é enorme”, concorda Maria Cristina Pinotti. Ela diz não entender por que, se havia a necessidade de emissão emergencial de uma cédula de maior valor, o governo não previu alternativas, como uso de cartões de plástico, ou a fixação de uma data-limite para fabricação das novas notas. Em todo o mundo, autoridades discutem o fim das notas de alto valor.

Procurado pela piauí, o ministério da Cidadania, encarregado do pagamento do auxílio emergencial, transferiu à Caixa a responsabilidade pela operação de pagamento do benefício; a Caixa informou ter seguido a lei 13.982, que criou o auxílio emergencial. Apesar de prever o pagamento em conta digital, essa lei proíbe movimentação com cartão físico, cheque ou ordens de pagamento. O governo, que relutou em aumentar o valor do auxílio emergencial, de 200 reais para 600 reais, como decidiu o Congresso, não mostrou preocupação com esse detalhe, na votação que aprovou a lei.

Mesmo que se decida interromper a emissão da cédula recém-criada, para impedir o aumento das notas mais altas em circulação, o bicho não sairá de cena tão cedo: as notas de 100 reais, com metade do valor, costumam ter vida útil de três anos, em média. Pequeno, mais fácil de guardar em grandes quantidades do que seus parentes monetários de 50 e 100 reais, o lobo-guará, diz o Banco Central, veio para ficar.

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