Em 2018, aos 26 anos, Zarifa Ghafari se tornou a mais jovem mulher a ocupar uma prefeitura no Afeganistão e uma das primeiras a fazê-lo. Mesmo com a vitória, ela só tomou posse um ano depois, por causa da interferência de políticos poderosos que queriam barrar o mandato da jovem prefeita. Ghafari é uma conhecida ativista pelos direitos humanos no país e no dia em que assumiu o cargo, recebeu a primeira ameaça: um grupo de homens invadiu seu escritório e tentou forçá-la a desistir da política. Em outra ocasião, integrantes do Talibã usaram ácido para atacar Ghafari e o atentado deixou cicatrizes de queimadura em partes de seu corpo. Na época, ela governava Maidan Shahr, uma cidade conservadora onde o Talibã tem apoio de parte da população. No ano passado, o pai de Ghafari, um integrante do exército afegão, foi assassinado na porta de casa. A ativista atribui a autoria do crime ao Talibã e entendeu a morte do pai como um recado para que ela desistisse da carreira. Nada disso foi suficiente para parar seu ativismo político. Pelo contrário: fez dela um símbolo da luta pelos direitos das mulheres no Afeganistão.
Mas assim que o Talibã voltou ao poder, em agosto passado, membros do grupo fundamentalista foram até a casa de Ghafari. Espancaram seus seguranças, roubaram as armas deles e ameaçaram a família e os vizinhos da então prefeita. Três dias após a queda de Cabul, Ghafari conseguiu fugir do país escondida no banco de trás de um carro, para que não fosse identificada por integrantes do Talibã que já ocupavam as ruas e controlavam o aeroporto da capital. Ela, o marido, a mãe e cinco irmãs conseguiram um avião para a Turquia e se refugiaram na Alemanha. Pegar aquele avião e deixar seu país, diz Ghafari, foi “a maior dor que teve na vida”.
A ativista ainda não se recuperou do trauma. Em passagem pelo Brasil, no fim de setembro, deixou claro que não gosta de relembrar os momentos de horror da fuga. Prefere ser porta-voz da luta pelos direitos das mulheres. Ghafari tem rodado o mundo para alertar sobre as violações praticadas pelo Talibã – violações que são ignoradas pelos líderes mundiais, diz ela à piauí. Zarifa Ghafari esteve no Rio de Janeiro, convidada para a cerimônia de entrega do prêmio Women in Tech, uma ONG que trabalha para empoderar mulheres através da tecnologia. A seguir, ela conta por que decidiu entrar para a política no Afeganistão e por que o Talibã é uma ameaça concreta para as mulheres. No depoimento de Ghafari, não faltam críticas à comunidade internacional, aos Estados Unidos e a países asiáticos que, segundo ela, financiam o terrorismo do Talibã.
Em depoimento a Camille Lichotti
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Eu nasci em 1992, mesmo ano em que o Talibã chegou à Cabul pela primeira vez. Não consigo me lembrar de como foram as coisas naquela época, mas eu cresci lendo sobre esse período e conversando com as pessoas que sobreviveram. Por isso eu sei que o Talibã só ficou mais cruel e mais sombrio com o tempo. Eu não consigo sequer chamá-los de humanos porque muitos deles são mais como zumbis. Apesar disso eu nunca tive medo, muito menos medo da morte. As pessoas morrem a qualquer momento, num sofá ou num campo de batalha. Na verdade, é o Talibã que tem medo das mulheres, principalmente das mulheres fortes, que não são como eles.
Desde criança meu sonho era atuar na política, ser uma ativista pelos direitos humanos. Eu via como as mulheres eram tratadas e como isso se refletia na minha própria vida. É muito difícil ser mulher em qualquer parte do mundo, eu sei disso. Mas no Afeganistão isso vai além, é mais grave. Os problemas para as mulheres se expressam em outras áreas: desde a forma como você se veste à forma como você se porta – tudo isso é uma luta diária, e o direito das mulheres no Afeganistão passa por todas essas questões. Em muitos países vizinhos, ter uma filha mulher é uma vergonha para a família. Em muitos deles as meninas não podiam continuar os estudos, muito menos virar líderes políticas. Eu sabia que esse problema que os países têm com as mulheres deveria mudar. Quando eu me convenci de que era necessário mudar essa situação, pensei: “Por que não ser a primeira e começar essa mudança?” Eu só precisava acreditar em mim mesma.
No começo foi muito difícil, sempre foi. Mas o que me fez persistir foi ver que eu podia chegar longe. Quando eu comandei uma cidade, consegui fazer todo aquele grupo de homens me ouvir. Foi extraordinário. Eu não era mãe deles, estava apenas a serviço da lei, aplicando as regras. Nesse ponto, ser uma mulher na política do Afeganistão é como em qualquer lugar do mundo. Você precisa se provar a cada segundo como uma liderança feminina, provar tudo a todo momento. Esse desafio, de certa forma, faz com que as mulheres se fortaleçam para conquistar seu lugar. Mas no Afeganistão as coisas são mais difíceis. Logo depois da posse começaram os ataques. Eu sofri diversas tentativas de assassinato desde que comecei a carreira, os ataques eram direcionados a mim ou a pessoas próximas. A partir daí comecei a perder. Em 2020, perdi meu pai. Agora que saí do Afeganistão, sinto que perdi toda a minha vida. Eu perdi tudo.
Não é questão de acreditar ou não nas garantias dadas pelo Talibã de que vão respeitar o direito das mulheres. É um fato que as ações deles nunca correspondem aos discursos. É só você abrir o YouTube. Lá você vai ver como eles espancam, humilham mulheres publicamente. Atualmente, a maior parte das famílias do Afeganistão são chefiadas por mulheres, por causa da perda de homens na guerra. São elas as responsáveis pelos filhos, são elas que trabalham para sustentar as famílias. E agora elas não podem mais. Existem vídeos nas redes sociais que mostram pessoas indo às ruas vender seus filhos, é chocante.
O que mais me assusta é o jeito como a comunidade internacional foi parte dessas mudanças e deixou as coisas chegarem a esse ponto. Eu não culpo um país só, mas toda a comunidade internacional foi conivente. Todos os líderes internacionais foram coniventes. Nos últimos meses eu trabalhei no Ministério da Defesa, e é muito mais claro e aberto pra mim o que estava acontecendo. A comunidade internacional nos fez passar por isso. Não acuso só um governo, mas todos. Eles usam sua força, dinheiro, pessoas, botam tudo nessa guerra em solo afegão. Eles não estão vendo agora como isso destrói nossa vida? O pior é que eles não são cobrados por isso. Por que a população desses países não se sente parte do problema? Por que não responsabiliza e cobra seus governos? Cobrem para onde vai o dinheiro de vocês. Onde está essa boa causa que os países [ocidentais] diziam financiar? Eu nunca me importei com as decisão dos Estados Unidos de sair do Afeganistão porque, quando eles chegaram [em 2001], eu também não fui parte dessa decisão. Naquela época ninguém perguntou minha opinião. Sair também foi uma decisão dos Estados Unidos. Eles tinham que sair, aquele não era o lugar deles. Mas o que nos deixou mais contrariados foi que eles saíram sem deixar garantia nenhuma. Simplesmente saíram decidindo o meu futuro e o de milhares de outras mulheres. Antes de sair, eles nos liquidaram. Há alguns anos [durante o governo Trump], os Estados Unidos testaram uma bomba no Afeganistão. Eles chamaram de “a mãe de todas as bombas”. Eles a usaram num esconderijo do Estado Islâmico e até chegaram a dizer que mataram alguns deles. Mas ficou claro que era uma demonstração de força, os líderes norte-americanos fizeram isso para desafiar a China. Eles jogaram uma bomba no meu país só para mostrar para a China o quanto eles são poderosos. No fim, tudo isso é sobre poder.
Sem financiamento de outros países, o Talibã é um grupo pequeno, com pouca expressão – ao contrário do que muita gente acredita. O mínimo que a comunidade internacional deve fazer é não reconhecer esse governo do Talibã se eles não respeitarem os direitos humanos mais básicos. Mas a verdade é que a guerra é um negócio. Não só isso: as armas são um negócio, a política é um negócio, a religião é um negócio.
Eu sei que há uma grande missão pela frente. Tudo que eu peço às mulheres dos outros países, às mulheres brasileiras, é que não se esqueçam de nós. Não deixem esse silêncio continuar. Por favor, usem a internet para denunciar esses abusos, usem hashtags, compartilhem os abaixo-assinados. Hoje o problema é o Afeganistão, amanhã pode ser qualquer outro país. Os terroristas não são amigos de ninguém, eles podem se espalhar para qualquer lugar.