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    O galerista Almeida Prado, alvo de agressão homofóbica em restaurante - Crédito: Acervo pessoal

questões de gênero

Homofobia silenciada

Galerista sofre agressão homofóbica em restaurante de São Paulo e enfrenta descaso da polícia

João Batista Jr. | 31 mar 2022_07h00
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Fábio Almeida Prado frequentava toda semana o restaurante Le Jazz, perto de sua galeria de arte na Rua dos Pinheiros, em São Paulo. No dia 11 de março, sexta-feira, ele combinou de beber por lá com uma amiga, antes de saírem para encontrar um grupo de conhecidos. A dupla chegou por volta das 20h15. Como de hábito, o Le Jazz estava lotado, e os dois ficaram do lado de fora, aguardando uma mesa. Quando finalmente se acomodaram, pediram drinques e uma porção de batata frita. O que seria o começo de uma noite agradável se transformou num pesadelo.

Na mesa atrás deles, um homem e uma mulher de aproximadamente 65 anos discutiam com certo estardalhaço. O casal estava embriagado. Às tantas, a mulher começou a se movimentar excessivamente, de tal modo que sua cadeira bateu na de Almeida Prado. Ele e a amiga espremeram-se um pouco mais para evitar problemas. O homem, então, foi até a dupla de amigos. “Minha mulher incomodou vocês?”, perguntou. O galerista respondeu que não houve incômodo algum. O homem insistiu: “Eu percebi que minha mulher incomodou vocês, sim, e quero saber o motivo.” Almeida Prado explicou que, naquele instante, quem estava incomodando era o homem e lhe pediu para retornar à sua mesa.

O agressor elevou a voz: “Eu não vou sair daqui, seu viado! Viadão! Bicha! Bichona!” O galerista, que é homossexual, se levantou e chamou um garçom. O homem ficou ainda mais irritado e ameaçou bater em Almeida Prado. Assim que se aproximou, o garçom tentou apaziguar os ânimos. Colocou-se entre o agredido e o agressor, que pegou de sua mesa uma garrafa de vidro, com água da casa.

“Sabe quando você fica incrédulo e não entende o que está acontecendo? Foi um ataque totalmente gratuito”, relembra o galerista. “Quis acionar a polícia, mas o garçom me impediu. Precisei sair do restaurante para ligar.” Nesse ínterim, o garçom tirou a garrafa do agressor.

O telefonema ocorreu às 21h30 e durou cinco minutos. Por recomendação do Le Jazz, Almeida Prado e a amiga se mudaram para uma mesa do lado de fora. As ofensas, porém, não cessaram. O agressor caminhou mais três vezes até o galerista e o xingou, sempre se valendo de expressões homofóbicas. “Você não sabe com quem está falando!”, bradava, entre um impropério e outro. Almeida Prado só não apanhou porque alguns clientes de mesas vizinhas conseguiram afastar definitivamente o homem. Segundo o galerista, dois seguranças do Le Jazz, terceirizados, presenciaram as investidas sem mexer uma palha. “Em vários momentos, eles permaneceram literalmente de braços cruzados.” Durante a confusão na área externa, Almeida Prado fez novas ligações para a polícia. A quarta e última se deu às 22h18.

Entre os telefonemas, uma viatura apareceu e parou em cima da calçada, perto do restaurante. “Pensei que os policiais iriam me ajudar. Chamei os caras com um sinal de mão, mas nenhum me atendeu. Minha amiga atravessou a rua e lhes contou o que aconteceu.” Os policiais informaram que estavam ali por causa de uma tentativa de furto na região. “A viatura que atenderá vocês já vai chegar. Aguardem”, orientou um dos agentes.

A amiga do galerista pediu para os policiais ficarem de olho no homem e na mulher, que àquela altura saíam do Le Jazz. O agressor segurava uma sacola de papelão e o tíquete do valet. Trôpega, a mulher caiu na calçada, mas logo se reergueu. Caso um dos dois pegasse o carro, poderia ser autuado em flagrante por embriaguez, com base no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Os policiais não pagaram para ver. Deixaram o local antes de o casal ir embora.

Na sacola de papelão, o homem carregava uma das garrafas de vinho que havia pedido durante o jantar. À espera do carro, ele a arremessou com força na calçada. Pedaços de vidro voaram em direção aos clientes que comiam fora do restaurante. Todos se levantaram, assustados. Ainda segundo o galerista, os seguranças do Le Jazz mantiveram-se impassíveis e não tomaram nenhuma providência. O agressor acabou partindo ao volante de um Subaru, com a mulher no banco de passageiro.

Mal saíram do estabelecimento, Almeida Prado e a amiga procuraram a 14a Delegacia de Polícia, localizada no mesmo bairro. “Pedi que o gerente ou um garçom do Le Jazz me acompanhasse para servir de testemunha. Não fui atendido”, lamenta o galerista. Na delegacia, o escrivão ouviu separadamente a vítima e sua amiga. De início, ele se negou a anotar no boletim de ocorrência as expressões homofóbicas desferidas contra Almeida Prado. Tampouco quis registrar o termo “homofobia”. Escreveu apenas que o agressor havia usado palavras “de baixo calão”. Depois de o galerista reiterar que se tratava de um caso de homofobia, o escrivão aceitou arrolar todas as ofensas no documento e fez questão de mencionar cada uma delas em voz alta (“viado, viadão”…) enquanto as digitava no computador, diante de outras pessoas. Classificou o episódio como “injúria”, e não como “injúria racial”, conforme desejava a vítima.

“Em palavras simples, o crime de injúria é praticado por intermédio de xingamento. Mas não qualquer xingamento. Injuriar é atacar com palavras a dignidade ou o decoro de alguém. Geralmente, o autor da injúria atribui à vítima um adjetivo desqualificador e coloca nela uma espécie de ‘etiqueta’. O delito costuma resultar em multa ou até um ano de prisão”, esclarece o advogado criminalista Flavio Grossi, que representa Almeida Prado.

Já a injúria racial é mais grave e pode levar à reclusão do agressor por um período de até três anos. A vítima sofre ofensas que evocam a cor de sua pele ou outras características identitárias, como etnia, crença religiosa, origem territorial e idade. Há quase três anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que discriminar pessoas LGBTQIA+ em decorrência de sua orientação sexual é um tipo de racismo. Por isso, quem pratica tal ato está sujeito à acusação de injúria racial.

Procurado pela piauí, o Le Jazz admitiu as investidas homofóbicas por parte do cliente. “Tomamos a iniciativa de entregar a conta ao agressor e lhe pedimos para se retirar da casa. Ele saiu, só que continuou ameaçando a vítima e outros clientes enquanto aguardava o carro. Insistimos para que fosse embora, mas o ofensor dizia que a rua é pública e que não poderíamos tirá-lo dali. As imagens de nossas câmeras, já entregues à polícia, mostram claramente que os seguranças protegeram a vítima e tentaram expulsar o agressor. O Le Jazz evita a todo custo usar a força. O estabelecimento é pequeno e qualquer briga pode gerar um tumulto maior. Agimos de modo a baixar a tensão e impedir que acontecesse algo pior. Nesse sentido, fomos eficazes, já que ninguém se feriu. Mas é claro que sempre podemos aprender e melhorar. Reafirmamos nosso compromisso com a luta anti-homofóbica e vamos continuar orientando nossa equipe a intervir de forma enfática em situações como essa.”

O presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti, ressalta que as minorias tendem a amargar dificuldades semelhantes às enfrentadas por Almeida Prado quando procuram a polícia. “Volta e meia, a gente se depara com uma má vontade institucional e sistêmica. Desde a decisão do STF, em junho de 2019, todas as delegacias do país deveriam saber que precisam qualificar as agressões contra os LGBTQIA+ como racismo transfóbico e injúria racial.” A secretaria paulista de Segurança Pública preferiu não entrar em detalhes sobre o caso. Declarou apenas que, chamada para averiguar “desentendimento em estabelecimento comercial”, a Polícia Militar “atendeu prontamente o solicitante e orientou as partes envolvidas”. No entanto, de acordo com Almeida Prado e a amiga, nenhuma viatura apareceu no restaurante para cuidar especificamente das agressões.

Uma semana depois do incidente, o galerista retornou à 14a DP, agora com seu advogado. Eles conseguiram retificar o boletim de ocorrência, que passou a considerar o episódio como um caso de injúria racial. A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) vai se encarregar da investigação. Graças às imagens de vídeo e à placa do Subaru, a Polícia Civil conseguiu identificar o agressor. Trata-se de um empresário que trabalha com manutenção de veículos luxuosos e cujo nome não foi revelado. “Nunca escondi minha orientação sexual. Tenho orgulho do homem que sou”, diz Almeida Prado. “Prestei queixa e peço justiça não apenas por mim, mas por todos os que são silenciados.”

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