Volto ao tema das pesquisas arqueológicas sobre a ocupação das Américas, tratado na reportagem “Os seixos da discórdia” (disponível para assinantes), publicada na 88, e num post recente.
São muitos os pontos de discórdia entre os pesquisadores desse campo. Não se pode afirmar com certeza quem eram os primeiros humanos a ocupar a América, quando eles chegaram ou quantas foram as ondas de migração que levaram à colonização do continente. A questão da rota usada pelos primeiros americanos tampouco está fechada, mas suscita bem menos polêmica.
A maior parte dos estudiosos está convicta de que os primeiros americanos vieram pela Sibéria, passando pela Beríngia, nome dado à faixa de terra que unia a Ásia à América ao fim da última Era do Gelo – hoje, os dois continentes são separados pelo Estreito de Bering. Essa era a única rota por via terrestre para a ocupação do continente. A animação abaixo mostra como o contorno da Ásia e América do Norte evoluiu nos últimos 20 mil anos:
Arte: NOAA
Não faltam, contudo, pesquisadores que desafiam o consenso dos colegas e defendem rotas marítimas de ocupação. Em geral, eles são descreditados pela falta de provas convincentes. As evidências arqueológicas, genéticas e linguísticas apontam para a origem asiática dos americanos. Além disso, os indícios de uso planejado e regular da navegação só aparecem depois da data em que os primeiros Homo sapiens teriam chegado.
Niède Guidon, a arqueóloga paulista que desde o final dos anos 1970 explora sítios arqueológicos na Serra da Capivara, no sul do Piauí, está entre os dissidentes. Ela sustenta a hipótese de uma ocupação vinda da África, via Atlântico Sul. Segundo ela, os paleonavegantes teriam se aproveitado do nível do mar dezenas de metros abaixo do atual e de uma corrente marítima favorável para fazer a viagem. “Eles chegaram na altura do delta do Parnaíba”, disse a pesquisadora numa entrevista em outubro passado. “Ainda hoje a costa do Piauí está cheia de iates que vêm da Europa aproveitando essa corrente.”
Outra rota alternativa foi proposta pelos arqueólogos Bruce Bradley, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e Dennis Stanford, do Instituto Smithsoniano, em Washington. Eles constataram semelhanças entre ferramentas encontradas na costa nordeste dos Estados Unidos e aquelas feitas pela cultura solutreana, encontrada na França, Espanha e Portugal por volta de 20 mil anos atrás. O trocadilho ficou famoso entre os arqueólogos: os primeiros americanos vieram pela Ibéria, não pela Sibéria.
Stanford e Bradley participaram de um congresso sobre a ocupação da América realizado em outubro em Santa Fé, nos Estados Unidos. Stanford discutiu um achado que, segundo ele, reforça sua hipótese: um artefato encontrado no fundo do mar a 80 quilômetros da costa da Virgínia, com características das ferramentas solutreanas. A datação indica que a peça teria quase 23 mil anos de idade. Por ora, poucos colegas fecham com a dupla.
Numa conversa durante um intervalo do congresso, perguntei a Bradley que tipo de novas evidências poderiam tornar seu argumento mais convincente junto à comunidade arqueológica. Ele afirmou que todas as evidências surgidas nos últimos anos reforçavam sua hipótese – ou, pelo menos, não a contrariavam. E completou que é preciso fazer pesquisa submarina na baía de Biscaia, na Europa, onde está submerso um terço do território ocupado pelos solutreanos. “Talvez ali haja coisas preservadas.”
Perguntei ainda se ele via com seriedade a hipótese de ocupação via Atlântico Sul, defendida por Niède Guidon. Bradley disse que não descarta nenhuma possibilidade, embora não veja indícios que justifiquem considerar essa hipótese. “Não me importa que os primeiros americanos tenham chegado há 200 mil anos e que tenham vindo pela Antártica, desde que as evidências o mostrem.”
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