Gláucia Drummond soube pela imprensa que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) decidira suspender por noventa dias os convênios em curso com organizações não governamentais. A notícia era motivo de apreensão, uma vez que afetaria um projeto tocado desde 2016 pela Biodiversitas, ONG da área ambiental sediada em Belo Horizonte na qual a bióloga atua como superintendente-geral.
A medida foi anunciada num ofício circular datado de 14 de janeiro, assinado pelo ministro Ricardo Salles e despachado para todos os órgãos do MMA. O documento determinava o levantamento de todos os desembolsos de fundos da pasta para ONGs em 2018, a suspensão da execução por noventa dias de todos os convênios e parcerias com organismos do terceiro setor – inclusive termos de cooperação e de fomento –, e também que novas parcerias de órgãos da pasta com ONGs só fossem realizadas após anuência prévia de seu gabinete.
Salles acabou por rever sua decisão e o MMA não vai suspender os convênios em curso, mas o anúncio suscitou dúvidas sobre o futuro das parcerias das ONGs com o ministério. No caso da Biodiversitas, a suspensão interromperia um projeto com o objetivo de restaurar a vegetação na margem de nascentes e cursos d’água na bacia do rio Manso, que abastece o reservatório de Belo Horizonte. Financiada pelo Ministério do Meio Ambiente, que deveria injetar 2,6 milhões de reais no projeto até 2020, a ação prevê recuperar 410 hectares de áreas degradadas e plantar 500 mil mudas de espécies nativas da mata ciliar.
A previsão era que o plantio dessas mudas começasse neste verão, para aproveitar as chuvas. A perspectiva de interromper o trabalho preocupou os ambientalistas. “Nesse caso perderíamos a estação chuvosa, teríamos que desmobilizar toda a equipe e parar os contratos”, disse Gláucia Drummond. O atraso prejudicaria uma ação para minimizar o risco de falta de água em Belo Horizonte – cidade sob grande estresse hídrico, assim como outras capitais brasileiras. A bióloga lembrou que a iniciativa atendia a especificações estipuladas pelo próprio ministério num edital de 2015. “Esse projeto é a implantação de uma política pública do governo brasileiro a partir do novo Código Florestal”, afirmou.
Outra iniciativa que poderia ser afetada pela medida é um projeto voltado para a proteção das espécies ameaçadas de extinção no Brasil. Lançada no ano passado e conduzida pela ONG WWF-Brasil, a estratégia prevê ações de prevenção, conservação, manejo e gestão numa área de 9 milhões de hectares distribuídos por treze estados, com orçamento total de 13 milhões de dólares.
Mas nem o próprio Ministério do Meio Ambiente sabe o alcance da decisão anunciada por Ricardo Salles: quando a piauí pediu uma relação dos projetos afetados pelo ofício do ministro, a pasta respondeu em nota que “está sendo feito o levantamento do total dos convênios e parcerias que serão objeto de análise”.
Depois que a notícia da suspensão começou a circular, porém, Salles pareceu recuar de sua decisão. Na quarta-feira, 16 de janeiro, dois dias após a expedição do ofício circular, o ministro declarou à Folha de S.Paulo que nenhum convênio em execução seria suspenso. “Nós iremos suspender por noventa dias aqueles que já estão assinados, mas ainda não iniciaram suas ações, para análise. Para aqueles que estão em execução, será solicitado os desembolsos e o plano de trabalho.”
No dia seguinte, foi a vez do recuo do recuo. Após participar da cerimônia de posse do novo presidente do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), Adalberto Eberhard, Salles negou que recuara em relação ao ofício do dia 14. “Tanto que a norma que nós baixamos continua em vigor nos exatos termos em que ela foi emitida para os órgãos do ministério”, afirmou aos jornalistas, segundo O Estado de S.Paulo. “Qual é a lógica? Aquilo que está em andamento vai ser analisado, escrutinado por nós tanto do ponto de vista de realização das atividades quanto da prestação de contas. Também será analisado aquilo que poderia ser assinado ou iniciaria a sua atividade. E em uma terceira fase aquilo que está sendo proposto. Para o primeiro grupo nós vamos enviar um ofício, pedindo as informações. E vamos fazer a análise. Não há recuo algum, é a mesma política que está mantida”, complementou.
Mas faltou combinar com Adalberto Eberhard. Em despacho interno do ICMBio datado também do dia 17, mas com metadados da manhã do dia seguinte, o presidente recém-empossado da instituição comunicou a “nova instrução” a seus subordinados, usando maiúsculas e negrito: “Oriento que todos os convênios e demais instrumentos de parcerias termo de execução descentralizada (…) já firmadas e vigentes do ICMBio devem ter sua execução continuada normalmente na forma prevista nos instrumentos.”
Procurado pela piauí para esclarecer se o ofício de Salles continuava válido, o MMA afirmou em nota que não suspenderá convênios ou parcerias que estejam em execução, mas deve solicitar às ONGs que apresentem um relatório de atividades e prestação de contas do uso dos recursos, que será analisado pelo ministério num prazo de noventa dias. “Os convênios e parcerias que estiverem corretos serão mantidos; os que precisarem de ajustes, serão corrigidos; e os que não cumprirem as exigências, serão suspensos”, informou a nota. “Já os convênios novos serão analisados após esse período de noventa dias.”
Os vaivéns do ministério deixaram uma sensação de insegurança entre os ambientalistas, em especial nas ONGs que poderiam ser afetadas pela suspensão dos convênios. A Biodiversitas, que não havia recebido qualquer comunicado sobre a interrupção do contrato com o MMA, tampouco foi notificada sobre a continuidade. Na dúvida, a organização seguiu com o cronograma de execução do projeto de recuperação das matas ciliares. “Continuamos tocando o projeto como se nada tivesse acontecido”, disse Gláucia Drummond.
Além da dúvida sobre a posição atual do ministro em relação à suspensão dos convênios, a forma escolhida por ele para anunciá-la foi motivo de insegurança. Em vez de fazer o anúncio como um instrumento com poder vinculante do ponto de vista jurídico – como uma portaria ou um decreto assinado pelo presidente –, Salles preferiu registrá-la num ofício de circulação interna no ministério. “Esse documento não sai no Diário Oficial”, criticou um assessor jurídico da área ambiental que deu entrevista à piauí sob condição de preservar o anonimato. “Como eu vou acompanhar o andamento das decisões que ele toma por meio de ofício?”
A imprecisão da redação também incomodou o assessor. O documento determinou a suspensão de convênios, parcerias, termos de colaboração e termos de fomento com organismos do terceiro setor. “Alguns itens citados são coisas específicas bem concretas, mas outras são genéricas”, afirmou. “É o caso das ‘parcerias’: cabe qualquer coisa nesse rótulo.”
Se levada ao pé da letra, a determinação do ministro deveria suspender um acordo de cooperação técnica entre o MMA e o Mapbiomas, plataforma de monitoramento do desmatamento em todo o território brasileiro com imagens de satélite. Criada por empresas de tecnologia, ONGs e universidades brasileiras, a iniciativa disponibiliza mapas de grande resolução da cobertura do solo em todos os biomas do país nas últimas três décadas.
O coordenador do Mapbiomas, o engenheiro florestal Tasso Azevedo, disse que tem acordos formais de cooperação técnica – que não envolvem dinheiro – com o MMA, o Ibama e o Serviço Florestal Brasileiro. “Damos treinamento e ensinamos os técnicos dessas instituições a usarem as ferramentas que desenvolvemos para mapear a cobertura e o uso do solo, tudo de graça”, disse Azevedo.
O engenheiro florestal não vê sentido em interromper a parceria com o MMA. “É um acordo em que todo mundo ganha”, afirmou. Na hipótese de suspensão do acordo, continuou, nada mudaria para a equipe do Mapbiomas. “Vamos continuar trabalhando, gerando dados para quem quiser – governos estaduais, ministérios públicos, tribunais de contas.”
O ofício de Salles determinava que fossem levantados os gastos do MMA em projetos bancados pelo Fundo Amazônia, que reúne recursos da ordem de 1,9 bilhão de reais destinados a financiar iniciativas de combate ao desmatamento e conservação da biodiversidade (os governos da Noruega e da Alemanha são os principais doadores). O Fundo Amazônia, no entanto, não é gerido pelo Ministério do Meio Ambiente, mas sim pelo BNDES – e, portanto, fugiria do alcance do ofício de Salles.
Isso não impediu que representantes de ONGs com iniciativas financiadas pelo fundo temessem por sua continuidade. É o caso do Projeto Floresta Ativa Tapajós, que pretende estimular a geração de renda de populações que vivem no entorno de duas unidades de conservação no oeste do Pará. Proposta pela ONG Saúde & Alegria, sediada em Santarém, a iniciativa seria realizada ao longo de três anos e recebeu recentemente a primeira parcela de um financiamento total de 12,5 milhões de reais.
“A iniciativa envolve a capacitação e treinamento da população, a construção de novos sistemas de água para as comunidades, a construção de usinas de processamento de óleos vegetais e o apoio para a montagem de rede de sementes e viveiros agroflorestais para a recuperação de áreas degradadas, dentre outros”, elencou o ambientalista Caetano Scannavino, coordenador da Saúde & Alegria.
Caso os repasses do governo federal ao projeto fossem suspensos, continuou Scannavino, a principal prejudicada seria a população daquela área remota que está prestes a realizar o sonho da água encanada. “Neste momento há mutirões feitos pelas comunidades para levantar caixas-d’água e construir o encanamento para fazer a água chegar às suas casas”, afirmou. O ambientalista lembrou que a Saúde & Alegria e outras organizações acabam se incumbindo de atribuições que deveriam ser do próprio governo. “A ONG está somando esforços com o Estado para tentar suprir esse buraco que o orçamento público não atende para o desafio Amazônia”, afirmou.
Scannavino disse que é bem-vinda a iniciativa de Ricardo Salles de conhecer melhor o papel desempenhado pelas ONGs que trabalham em parceria com o ministério – o ministro anunciou numa entrevista recente que faria visitas surpresa a algumas delas. “Se ele fizer um trabalho sério nesse exercício de estudar a atuação das ONGs, chegará à conclusão de que a grande maioria delas traz contribuições fundamentais para a pasta do Meio Ambiente.”