A reunião ocorrida na segunda-feira entre o Ministério da Justiça e representantes de plataformas sociais, para tratar das medidas a serem tomadas em face de postagens com conteúdos de ameaça, incitação ou apologia relacionados à violência contra estudantes, professores e escolas, tornou explícito algo que já vinha se desenhando desde antes: as empresas de tecnologia, principalmente as que oferecem plataformas de interação social, como Twitter, Facebook, Instagram e TikTok, estão perdendo o cabo de guerra da regulação sobre seu modelo de negócios, um terreno onde vinham sendo praticamente imbatíveis desde a sua criação.
Dessa vez, coube ao Twitter deixar claro o tamanho da dissonância, entre, de um lado, a maneira como a própria empresa enxerga o seu papel diante das externalidades geradas pelo serviço que ela oferece; e, de outro, aquilo que dela esperam diversos atores cujas vidas são impactadas pelo seu conteúdo – desde o governo, cuja indignação com a postura da companhia ficou evidente na manifestação do ministro da Justiça, Flávio Dino, até escolas, educadores, famílias e crianças, que penam para decidir como fazer frente às mensagens deletérias que circulam, nas redes, com eficiência invencível. Até o Supremo entrou na dança, com o ministro Luís Roberto Barroso, um tradicional aliado da ampla liberdade da circulação de ideias, expressando abertamente a posição de que “tornou-se inevitável” a regulação das plataformas.
Na recente audiência pública realizada no STF sobre casos envolvendo o artigo 19 do Marco Civil da Internet, o representante da Meta sugeriu que o caminho para combater conteúdos capazes de gerar efeitos sociais danosos deveria continuar sendo o mesmo de sempre: a busca, pelas empresas, da contínua melhoria de suas políticas internas, mas sem alteração da regulação jurídica atualmente vigente, que dá a elas ampla liberdade para não remover conteúdos, a não ser por ordem judicial. A postura do Twitter – que tem regras de moderação sobre conteúdo relacionado a ataques violentos – na reunião de segunda-feira mostra os limites desse caminho do “vamos continuar fazendo mais daquilo que sempre fizemos”. Ela revela indisposição de uma das gigantes do setor em genuinamente refletir sobre essas prometidas melhorias, mesmo diante de casos extremos como violência contra escolas, nos quais há consenso entre especialistas quanto aos danos causados pela divulgação de imagens e conteúdos associados aos crimes e a seus perpetradores. A recente decisão da empresa de responder a todos os contatos da imprensa com um emoji de cocô apenas reforça a percepção de que as titãs globais de tecnologia, no fundo, não dão bola para os questionamentos que lhes são dirigidos pelas sociedades que são direta e cotidianamente impactadas, inclusive no nível das vidas individuais de seus cidadãos, pelos produtos que geram suas receitas.
Por que o discurso público das plataformas, que até aqui foi suficiente para lhe garantir um desenho regulatório convidativo ao crescimento fantástico de seu modelo de negócios, perdeu tração no debate público?
A internet nasceu e cresceu sob o mantra de um valor político basilar nas democracias: a liberdade. Para os negócios das redes sociais, três direitos específicos relacionados à liberdade sempre foram especialmente invocados: a liberdade de expressão, já que qualquer um passou a ser capaz de dizer ao mundo aquilo que bem quiser; a liberdade de informação, pois os canais para divulgação de fatos, opiniões e denúncias tornaram-se infinitamente maiores, como também as opções para quem deseja se informar; e a liberdade de iniciativa econômica, que permite a exploração de negócios inovadores, baseados em conexões de bilhões de pessoas em rede.
Mas a organização dessas redes sob a forma de empresas privadas, orientadas à obtenção de lucros, tornou um desses motores, o econômico, predominante sobre os demais. Quando emparedadas em outras oportunidades, empresas de tecnologia não tiveram problemas em trocar um naco da liberdade que dizem defender (a nossa, no caso) para chegarem a bom termo com os reguladores e garantir o sucesso de seus modelos econômicos. A despeito de venderem a sensação de que estamos em um mundo sem barreiras e sem limites, plataformas de internet tornaram-se, por sua arquitetura, formas de controle e monitoramento comportamentais altamente eficientes. Ao menos do ponto de vista das redes sociais, seu modelo de negócios baseia-se na ideia de que a forma de consumo de conteúdos por seus usuários torna-os suscetíveis a campanhas de convencimento – para consumo de produtos, serviços ou ideologias – altamente eficazes em comparação com modelos anteriores de comunicação, publicitária ou política. Em muitos casos, o produto final, que vem embalado em papéis de presente como “conectamos pessoas” e “damos voz a todos”, acaba sendo desinformativo, manipulador ou coercitivo. Isso é o oposto da liberdade.
O pano de fundo do discurso escolhido pelas big techs para sustentar seus interesses econômicos, e defender uma regulação mais favorável a seu modelo de negócios, mudou. Era mais fácil que o discurso libertário colasse quando essas empresas, mesmo quando já eram gigantes econômicas transnacionais, tinham suas imagens associadas a hippies simpáticos que se tornaram inesperadamente bilionários por terem criado espaços virtuais que promoveriam aquilo que de mais intrinsecamente humano temos, como o anseio por sociabilidade, a criatividade e a liberdade expressiva.
Mas na medida em que atores nocivos aprendem a usar essas ferramentas para perseguir objetivos deletérios tanto a comunidades quanto a indivíduos, o efeito do discurso de sempre já não é o mesmo. É inequívoco que inimigos declarados do regime político que mais se associa à liberdade, que é a democracia, descobriram como usar plataformas para desafiar a própria democracia. Como também é inequívoco que agentes interessados em promover terror social, que igualmente impedem a ação livre porque coagem e intimidam, podem fazê-lo hoje sem precisar colocar explosivos em lixeiras. E desde que não façam postagens explícita e literalmente incitadoras, com ordens diretas e verbos no imperativo comandando mortes e ataques – e quem faz isso? –, haverá representantes de plataformas defendendo que eles possam fazê-lo. Mas isso ocorre não porque essa defesa seja uma exigência da liberdade, pois não é; mas porque essa possibilidade ainda interessa aos modelos de negócios das companhias, a despeito dos custos sociais que ela acarreta. Quando estudantes temem ir à escola e professores dão aula assustados sob a influência daquilo que consomem pelas redes, a liberdade não está vencendo.
Nesse contexto, a recusa em adotar políticas mais incisivas de moderação de conteúdo só piora a credibilidade do discurso das plataformas. Juridicamente, não haveria incompatibilidade entre preservação da liberdade de expressão e o uso do poder de moderação de conteúdos em casos como os reclamados por Flávio Dino. A possibilidade de moderar, isto é, de limitar o que e como certas coisas podem ser postadas, faz parte da liberdade de iniciativa das empresas, pois é o que permite que cada uma delas dê às suas plataformas as características que desejam. É o que ocorre quando certas redes proíbem pornografia ou até perfis de paródia. É provável que nem mesmo os representantes políticos da extrema direita, que cinicamente batem bumbo pela liberdade de expressão enquanto comemoram perseguição policial a adversários políticos e atuam para intimidar a imprensa, fariam oposição à maior moderação nesses casos. Assim como a idade da pedra não terminou por falta de pedras, a era da regulação baseada em moderação das próprias plataformas não acabará por falta de conteúdo que se deveria moderar.