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    Ilustração: Carvall

questões da cidadania

Iguais de sangue

O que mudou nos hemocentros para garantir a homossexuais um direito assegurado pelo Supremo, a doação de sangue; conquistas da população LGBTI vêm se sucedendo nos últimos anos

Felippe Aníbal | 24 jun 2020_15h23
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Mesmo com pavor de agulhas, o jornalista curitibano João Pedro Schonarth, de 32 anos, saiu de casa bem cedo, antes das 7 horas, na última sexta-feira (19), para doar sangue. Schonarth é homossexual e, apesar de há uma década se relacionar com uma única pessoa – seu marido –, era impedido de fazer a doação de sangue por causa dos critérios estabelecidos pelos órgãos de saúde. Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou as restrições do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que inabilitavam à doação de sangue “homens que tiveram relações sexuais com outros homens”. A decisão começou a ser seguida na semana passada, depois que a Anvisa notificou hemobancos de todo o país.

“Cidadania é ter direitos e deveres. Na hora dos deveres, nós [homossexuais] somos iguais aos heterossexuais. Na hora dos direitos, nem sempre. Posso escolher não doar, mas não posso ser excluído. Fiz questão de exercer essa cidadania. A gente tem que se apropriar do direito, fazer valer.  Como estava, a exclusão era imediata”, disse o jornalista.

Schonarth já havia sentido essa exclusão. Em 2006, na faculdade, uma professora dele teve um parente hospitalizado e pediu que os alunos doassem sangue. Na antessala de coleta, ao responder que havia mantido relação sexual com outro homem, Schonarth foi classificado como “inapto” para doação e dispensado automaticamente – de acordo com dispositivos da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014, da Anvisa. Sentiu-se discriminado. De lá para cá, acompanhou os debates sobre o tema e a tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que questionava os critérios das normas que acabavam por tolher de homossexuais o direito a doar sangue. Quando o STF, por maioria de votos – sete a quatro – declarou os dispositivos inconstitucionais, derrubando a proibição, Schonarth decidiu que era hora de voltar ao banco de sangue.

“Quando a enfermeira perguntou se eu mantinha relação só com uma pessoa, respondi que sim, que sou casado há dez anos. Ela perguntou pela minha esposa. Eu disse: ‘Não é esposa. É meu marido.’ Ela perguntou se eu sabia da recente decisão do STF e disse: ‘Acho ótimo [o novo entendimento], porque várias vezes eu tive que classificar homossexuais como inaptos e me cortava o coração.’ Era como se a enfermeira estivesse celebrando também”, afirmou Schonarth.

Schonarth ao doar sangue – Foto: Acervo pessoal

 

Com a decisão do STF, foi suprimido da portaria do ministério e da RDC da Anvisa o inciso que tornava inaptos para a doação “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”. Apesar de o julgamento do Supremo ter se encerrado em 8 de maio, os hemobancos demoraram mais um mês para receber nova orientação da Anvisa – o que ocorreu em 12 de junho, uma sexta-feira. Só a partir da segunda-feira seguinte, 15, é que os homens homossexuais puderam exercer o direito de doar sangue, desde que se enquadrem, é claro, nos outros critérios estabelecidos. O doador não pode, por exemplo, ter tido parceiros sexuais ocasionais ou eventuais sem uso de preservativo ou ter feito uso de drogas ilícitas injetáveis, ao longo dos últimos doze meses. Isso vale para pessoas de qualquer orientação sexual.

A última pergunta do questionário para homens – se ele tinha tido relação sexual com outros homens – foi abolida. “Agora, os critérios são os mesmos, independentemente de gênero ou orientação sexual. O critério é a prática de risco do doador. Isso vale para todos. Homem, mulher, homossexual masculino, travesti… para todos”, explicou a diretora do Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), Liana Andrade Labres de Souza. “Eu, como mulher, mãe, cidadã, nunca gostei da restrição [que havia]. Mas como profissional de saúde, tinha que acatar”, acrescentou.

Para reforçar a conquista, entidades como a Aliança Nacional LGBTI+ e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) lançaram campanhas nesta segunda-feira (22) não só estimulando a doação de sangue, mas incentivando que homossexuais que venham a ser impedidos de exercer o direito denunciem o  problema. A campanha aproveita não só a decisão do Supremo mas também o Dia Mundial do Orgulho LGBT, em 28 de junho. Presidente da Aliança Nacional LGBTI+, o ativista e pós-doutor em educação Toni Reis celebrou a “queda de um estigma que durava 27 anos”. A proibição total para que homens gays doassem sangue começou em 1993, num contexto em que o Brasil e outros países enfrentavam uma epidemia de Aids e que levava em conta o fato de que a prevalência do vírus HIV entre a população LGBTI+ era bem maior em relação aos heterossexuais. Em 2002, a restrição foi flexibilizada, autorizando que homossexuais doassem sangue, desde que a relação sexual tivesse ocorrido mais de doze meses atrás.

“Quando colocaram a proibição, em 1993, nós nem questionávamos, porque o HIV era tido como um câncer gay. Parecia uma verdade. Nos anos 2000, começamos a perceber o quanto a proibição era estigmatizante e sem sentido. Começamos a enviar ofícios aos ministérios, participar de conselhos. Eu nem tentava doar sangue, porque levaria um não redondo. Teria que mentir e eu não faria isso”, disse Reis. A Aliança LGBTI+ indicou cinco membros para integrar o grupo que trabalho que vai redigir a nova normativa da Anvisa relacionada à doação de sangue.

Outros direitos importantes foram assegurados à população LGBTI+ ao longo da última década, a partir de interpretações do STF. Em 2008 Schonarth conheceu seu marido, Bruno Banzato, que hoje tem 34 anos e trabalha como consultor técnico de uma agência governamental. Na ocasião, moravam com suas respectivas famílias, mas ambos faziam planos de sair de casa. Como “amigos”, compraram um imóvel na planta. Em outubro de 2010, em um cartório de Curitiba, firmaram um contrato de união estável. “A gente teve que contratar uma advogada, porque não eram todos os cartórios que faziam a união de casais homossexuais”, contou o jornalista. No ano seguinte, os ministros do STF reconheceram, por unanimidade, a união estável de pessoas do mesmo sexo. Com base nisso, dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução permitindo que casais homoafetivos se casassem em cartórios. Após a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), Schonarth e Banzato optaram por lançar mão desse novo direito e, por “questão de segurança”, converteram a união estável em casamento civil. 

“Houve um temor, porque o período eleitoral foi muito pesado. Havia medo por causa das coisas que o Bolsonaro falava o tempo inteiro. Sabíamos o que ele falava, mas não tínhamos certeza do que, de fato, ele faria. Como juristas diziam que o casamento era uma instituição mais segura do que a união estável, resolvemos fazer valer esse direito. Não teve nem cerimônia. A mãe do Bruno e um amigo foram testemunhas”, contou Schonarth.

Na época, o casal já se preparava para realizar o sonho de ter um filho. Desde 2014 Schonarth e Banzato estavam cadastrados para adotar uma criança de um a quatro anos. No ano seguinte, se animaram. Analisando um recurso especial, a ministra Cármen Lúcia, do STF, manteve a decisão que autoriza um casal gay a adotar uma criança, independentemente da idade. Na ocasião, a ministra destacou que a Constituição não faz a menor distinção entre casais heterossexuais e homoafetivos, pacificando o entendimento quanto ao direito à adoção de núcleos familiares homossexuais. A espera do casal curitibano, no entanto, se estendeu até 14 de janeiro de 2019, quando Schonarth recebeu uma ligação de um técnico do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR): seu filho “tinha chegado”. Três dias depois, o casal conheceu o menino Daniel, de um ano e meio, na casa-lar em que a criança morava desde o nascimento. Ainda em janeiro de 2019, a adoção seria concluída.

“Quando o técnico [do TJ-PR] disse: ‘O filho de vocês chegou’, eu me arrepiei e meu coração disparou. Quando fomos visitá-lo pela primeira vez, uma magia aconteceu: ele não quis voltar a brincar com as outras crianças. Ele nos escolheu”, relatou Schonarth. No último sábado (20), Daniel completou três anos.

O recurso especial analisado pelo STF – e que abriu caminho para que casais homoafetivos pudessem adotar, sem restrição da idade da criança – decorre de um processo relacionado a Toni Reis e ao marido dele, David Harrad. Ainda em 2005, o casal deu entrada no processo de habilitação para a adoção junto à Vara da Infância e da Juventude de Curitiba, mas o juiz decidiu que Reis e Harrad, por serem gays, só poderiam adotar uma menina de mais de dez anos. Os ativistas consideraram a restrição discriminatória, recorreram e, em segunda instância, o TJ-PR derrubou o óbice. Um promotor do Ministério Público do Paraná (MP-PR) recorreu, levando o caso às cortes superiores. A decisão só sairia dez anos depois. Nesse meio-tempo, Reis e Harrad conseguiram realizar o sonho de serem pais, adotando crianças em outros estados – onde a interpretação já estava adequada à decisão do STF de 2011, que reconhecia casais homoafetivos como uma família. Hoje, os ativistas têm três filhos: Alyson, hoje com 19 anos, Filipe, 17, e Jéssica, 14 (os dois últimos, irmãos consanguíneos). A decisão decorrente do processo do casal beneficiaria todos os casais homoafetivos que, posteriormente, quisessem adotar um filho.

“Se a resposta institucional for discriminatória, a gente tem que lutar. Então, se o outro pode, por que eu não posso? O Estado não tem que interferir no que eu sou, mas garantir o direito constitucional”, disse Reis.

Após terem iniciado o processo de habilitação à adoção, Schonarth e Banzato compraram um sobrado na planta, para terem mais espaço para quando o filho viesse. Em 2017, quando o imóvel estava em fase de acabamento, eles passaram a frequentar o condomínio e acompanhar o trabalho dos pedreiros. A partir de então, a obra sofreu sabotagens: em duas ocasiões, alguém tentou inundar o piso da casa, deixando uma mangueira aberta durante a noite. O casal só relacionou o caso à homofobia quando, na semana seguinte, um panfleto passou a ser distribuído na vizinhança. Ilustrado com fotos de casais de homens, o material continha um texto que dizia que “em breve, a rua será mais ‘Alegre’!!!!” e que os moradores do bairro teriam uma “visão para inspirar e influenciar toda a vizinhança, você, seus filhos, seus netos e amigos [sic]”. O panfleto também divulgava onde o casal moraria como “o endereço da baixaria”. Schonarth e Banzato sentiram medo, mas foram em frente. Com a conclusão da obra, passaram a viver no condomínio.

Ao mesmo tempo, eles obtiveram apoio maciço da sociedade. Assim que o caso veio à tona, por meio de uma postagem de Schonarth no Facebook, mais de trezentas pessoas promoveram uma manifestação na praça em frente ao condomínio, em apoio ao casal. Paralelamente, eles registraram boletim de ocorrência, denunciando os ataques. A investigação conduzida pela Polícia Civil apontou que os panfletos tinham sido distribuídos por um morador do condomínio. Ele foi indiciado pelo crime de injúria, já que, na época, ainda não havia a definição de LGBTIfobia como tipo penal. A criminalização da homofobia, transfobia e congêneres só ocorreria em 13 de junho de 2019, após decisão do STF, em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), relatada pelo ministro Celso de Mello, e de um Mandado de Injunção (MI), relatado pelo ministro Edson Fachin. Por maioria, a corte equiparou os crimes de ódio contra a comunidade LGBTI+ aos casos de racismo. Por vontade própria, o homem apontado como autor dos cartazes se mudou do condomínio após o episódio.

“Naquele tempo, a homofobia não era crime, então não deu em nada. Se fosse hoje, teríamos respaldo para que a pessoa fosse punida”, avaliou Schonarth. “Mas olhando para trás, a gente vê o quanto o funcionamento das instituições é importante para a garantia de direitos. Foram degraus de cidadania que a gente foi galgando ao longo dos anos. Por isso, a gente tem que ter os três poderes funcionando bem. Sem isso, a sociedade está à deriva”, acrescentou. 

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