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    CRÉDITO: ACERVO ESTADO DE MINAS

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Ilegítima defesa da honra

Por que a Rádio Novelo decidiu produzir um podcast sobre o assassinato de Ângela Diniz

Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux | 05 set 2020_09h01
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Não sabemos exatamente o que aconteceu na noite de 30 de dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, em Búzios, estado do Rio. Os depoimentos se contradizem em alguns pontos, como quem disse o quê para quem e em que tom. Estavam na casa apenas Doca Street, Ângela Diniz e duas empregadas, que ouviram os tiros, porém não toda a conversa. Todos os depoimentos, no entanto, inclusive o de Doca, concordam no mais importante: Doca matou Ângela com quatro tiros, o último à queima-roupa quando ela já estava caída. 

Ângela e Doca viviam juntos havia poucos meses. O relacionamento era tempestuoso e violento. Mesmo assim, o plano do casal era de se mudar para Búzios e levar uma vida mais simples, longe da badalação da cidade grande. Ou, ao menos, esse era o plano dele. Ela havia confidenciado a amigos que pretendia terminar o namoro em Búzios e começar o ano de 1977 sem Doca.  

Ela era uma socialite mineira, e ele, um paulista que talvez merecesse o título de socialite, se costumássemos chamar assim os homens. Naquela noite, depois de mais uma briga, ela o tinha mandado embora. Ele fez menção de ir, mas voltou e atirou.

Os advogados de defesa argumentaram, com sucesso, que Ângela teria ofendido Doca em sua honra de homem, obrigando-o a matá-la. A tese se chamava “legítima defesa da honra”, e não era nova. Já em 1895, no jornal A Semana, um articulista anônimo se referiu à defesa da honra como “heresia jurídica sempre bem-aceita do júri e coroada da absolvição do acusado”. Heresia jurídica porque essa defesa não constava do Código Penal. Sempre bem-aceita porque o júri, composto de cidadãos comuns que desconhecem as leis e refletem os humores da sociedade em que vivem, costumava concordar que a honra de um homem depende do comportamento da companheira. E como a honra é importante para os homens, eles teriam o direito de matar em nome dela.

O resultado eram manchetes como essa, de 1945, sobre um peixeiro no bairro carioca de Santíssimo que desconfiou de adultério: “Excedeu-se na defesa da própria honra ao degolar a esposa.”  Ele foi condenado a dezoito meses a serem cumpridos em liberdade porque o júri considerou que as navalhadas haviam sido desferidas em defesa da honra. 

 

O julgamento de Doca Street aconteceu em 1979, em Cabo Frio, e ele saiu livre do tribunal por já ter cumprido, em 1977, um terço da pena de dois anos a que fora condenado. A sentença foi recebida com uma ovação do público presente. O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, que cobriu o julgamento para a revista Manchete, escreveu uma matéria que saiu com o seguinte título: “Doca Street merece castigo?” 

CRÉDITO: ACERVO ESTADO DE MINAS

 

“Isso nos indignou que você não pode imaginar. Cada uma de nós ficava olhando uma pra outra meio culpadona, porque quem foi julgado ali foram as mulheres.” É assim que Hildete Pereira de Melo, uma das veteranas da segunda onda do feminismo brasileiro, nos anos 1970, descreve hoje a reação de suas amigas. O movimento, na época, não passava de poucas associações de mulheres, mais preocupadas em formar grupos de reflexão e elaborar estudos acadêmicos do que em fazer passeata. Esse caso, porém, fez com que passassem da reflexão à mobilização. 

 

O resultado mais conhecido dessa mobilização foi a campanha Quem ama não mata, iniciada em 1980, de combate à violência contra a mulher. O caminho para a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio remonta a essa geração de feministas. Contudo, a luta para carrear o sistema jurídico brasileiro do século XIX para o XX continua viva ainda no século XXI.  Até 2005, por exemplo, o Código Civil dava tratamento preferencial a mulheres definidas como “honestas” em casos de “violação sexual mediante fraude”, mais conhecido como assédio e abuso. Se a vítima fosse prostituta, por exemplo, a violação sexual não era considerada crime. Também até 2005, em casos de estupro, o processo se extinguia se o estuprador se casasse com a vítima.

 

Contar a história de Ângela Diniz num podcast nos pareceu, de início, um clichê. Os podcasts saíram do nicho em 2015 com Serial, um programa americano sobre outra história de true crime, igualmente o assassinato de uma jovem pelo namorado. Serial foi o primeiro podcast a alcançar mais de 100 milhões de ouvintes. Hoje há centenas de podcasts sobre crimes, em quase todas as línguas, boa parte tendo como vítimas mulheres jovens.

Este caso, no entanto, era diferente. A despeito de alguns recantos alimentados por teorias da conspiração bastante fracas e de curta duração, nunca houve dúvida sobre quem matou Ângela Diniz. Não havia por que nos determos nos detalhes mórbidos da cena do crime. A única pergunta cabível – a que nos levou a voltar a uma história de sofrimento que destruiu duas famílias – é por que Doca Street quase conseguiu se livrar da punição. 

A justificativa para mais uma história de true crime, então, seria narrar esse capítulo pouco conhecido do movimento feminista no Brasil. Em Minas Gerais, terra de Ângela Diniz, jovens feministas que nunca antes tinham organizado uma manifestação reagiram à matança continuada de mulheres pelos maridos e criaram um movimento em questão de semanas. No Rio, na ausência de delegacias da mulher, voluntárias tentavam proteger mulheres ameaçadas pelos companheiros num esquema improvisado de escolta. Eram ativistas tateando no mundo novo pós-Anistia, trilhando um caminho que levaria a conquistas jurídicas, legislativas, e culturais. 

Outra razão de ser para o podcast seria contar a trajetória de Ângela Diniz, essa mulher cuja história foi amplamente coberta pela imprensa antes e depois de sua morte, porém ainda uma personagem unidimensional na memória de quem viveu aquela época. Ela era retratada como a mulher fatal por excelência, chamada de “Pantera de Minas” pelo colunista social Ibrahim Sued e de “Vênus lasciva” que queria “a vida livre, depravada” pelo advogado de Doca Street. O que descobrimos ao longo de mais de um ano de pesquisa foi muito mais interessante.

 “O Tom Jobim não dizia que o Brasil não é para principiante? Então, a Ângela Diniz também não era para principiante.” Isso nos foi dito por um ex-namorado, que depois ficou amigo dela, como era geralmente o caso. Dos vários depoimentos de ex-namorados que ouvimos, ficamos com a impressão de que ela não guardava rancor, e em geral também não causava rancor. Seus casos amorosos terminavam e os amantes viravam amigos.

Talvez fosse porque ela era espontânea, não escondia nada, dizia o que pensava e fazia o que queria. Desde jovem era assim, desde criança até. Anna Marina Siqueira, colunista do jornal Estado de Minas, que a conheceu na infância, descreve-a como quase ingênua de tão sincera. Acha que é por isso que Ângela morreu, por não compactuar com o que ela mesma chamava de “a indisfarçada hipocrisia da tradicional família mineira”. 

Passamos mais de um ano pesquisando a história de Ângela, Doca, das feministas pioneiras e da época em que todos viveram. O ponto de partida foi nossa perplexidade pelo assassinato quase impune de uma mulher e o subsequente vilipêndio a que sua história foi submetida pelo Judiciário, pela mídia e pela opinião pública. Porém, ao tentarmos reconstruir uma vida que acabou aos 32 anos em Búzios e foi exposta à curiosidade do público num tribunal em Cabo Frio, encontramos uma pessoa cativante, às vezes exasperante, mas sempre vital: encabeçando mini-revoltas no colégio de freiras, melancólica e solitária na rotina de casada e, uma vez desquitada, finalmente pisando com júbilo fora dos limites impostos pelo decoro da sociedade de seu tempo.

“Ela era intérprete de si mesma, a atriz dela mesma”, disse o jornalista e escritor Roberto Drummond, seu conterrâneo e amigo, numa entrevista nos anos 1990. “E a vida dela sempre foi a de um personagem que ela interpretava com alegria e de maneira trágica.”  A tragédia como desfecho necessário para a vida de uma mulher intérprete de si mesma nos parece hoje uma ideia obsoleta. Para os advogados de Doca Street, entretanto, era o único desfecho possível. Segundo um deles, “esta moça queria morrer”. Segundo outro, Ângela, parida com auxílio de fórceps, estava por conseguinte marcada para a tragédia desde o nascimento.

 

A legítima defesa da honra, embora ainda invocada por advogados pelos rincões do Brasil, é hoje, finalmente, uma heresia jurídica, como desejava o articulista anônimo em 1895. Homens que matam suas companheiras não mais são tratados, pelo Judiciário ou pelo público, como personagens admiráveis movidos por amor. E esse é um dos legados do movimento impulsionado pela sentença pronunciada num tribunal de Cabo Frio em 1979. Também o fato de podermos contar a história de Ângela Diniz de um ponto de vista radicalmente diferente – fundado em ideias que, de radicais, tornaram-se moeda corrente – igualmente serve como testemunho dos avanços do feminismo.

Revisitar injustiças do passado, mostrando como foram desmontadas ao longo dos anos, e retratar em toda a sua complexidade a mulher no centro deste caso não deixa de ser, de certa forma, uma continuação desse movimento e uma homenagem às mulheres que o encabeçaram.

Todavia, contamos esta história depois de um ano com número recorde de feminicídios, que colocou o Brasil na quinta posição do ranking mundial de assassinatos de mulheres. Essa é uma clara evidência de que a vitória ainda está longe. 

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Praia dos Ossos é um podcast original da Rádio Novelo. Série em oito episódios com publicação aos sábados, a partir de hoje, 12 de setembro. Ouça no seu aplicativo de podcast de preferência ou no site do programa

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