A ilusão é inerente ao cinema – o aparente movimento das imagens resulta, na verdade, da projeção em sequência rápida de imagens fixas, cada uma ligeiramente diferente da anterior.
A essa característica imanente, soma-se outra: a impressão de realidade – imagens bidimensionais, incluindo as que simulam três dimensões, articuladas segundo convenções de linguagem dominantes, são vistas como se fossem a reprodução da realidade.
E há ainda a quimera de propiciar ao espectador viver experiências alheias, com a certeza de que, terminado o filme e acesas as luzes, estará de novo em terreno seguro e conhecido.
Essas formas interligadas de ludibriar os sentidos estão na origem do lugar conquistado pelo cinema ao longo do século passado, reconhecido como expressão artística e forma de entretenimento, além de produto industrial de vasto consumo capaz de movimentar milhões em escala mundial.
Sendo constitutiva do cinema, a ilusão tem também o efeito de tornar os profissionais do setor particularmente propensos às armadilhas do auto-engano. Dificilmente um produtor ou realizador deixa de acreditar que seu filme atrairá multidões. E em certos países, como o Brasil, nos quais não é preciso comprovar a viabilidade financeira do que é produzido, o ilusionismo tende a ser epidêmico e devastador.
O auto-engano – título de um livro de Eduardo Giannetti (Companhia das Letras, 1997) – nasce do engano:
“O enganador embarca em suas próprias mentiras, deixa-se levar de modo gradual e crescente por elas e, enfim, passa a acreditar nelas com toda inocência e boa-fé deste mundo. Ele não desperta dúvidas por que não as tem; duvidar agora, quem há de?”
Mas “a propensão natural do homem ao engano e ao auto-engano”, afirma Giannetti, causa dano e sofrimento:
“A miséria do auto-engano não se reduz ao dano que ele – isolado no indivíduo ou composto em sociedade – pode causar aos outros. Se o risco do enganador calculista é sua detecção, seguida de punição e opróbrio, no caso do auto-engano, a principal vítima é com frequência o próprio ator.”
Propenso a ser uma maldição, segundo Giannetti, o auto-engano não deixa por isso, de ter um lado positivo, sendo “aliado da vida e da criação […]. Quem poderia negar o benefício da capacidade de merguhar periodicamente nas ficções do sonho e da arte?”
Assim, talvez seja possível dizer, no caso dos impasses do cinema, área privilegiada da ilusão, que o desafio é conviver com o auto-engano sem ser vítima de sua maldição.
Estar atento aos perigos do auto-engano seria, então, condição necessária para evitar danos causados no passado, e que continuam sendo feitos, pondo em risco, no caso do Brasil, a própria sobrevivência da atividade cinematográfica.
Comentando a crise econômica na Europa, Paul Krugman escreveu há dias que a situação se tornou mais grave “do que necessário por causa da maneira como os líderes europeus, e de maneira geral a elite política, substituiram análise por moralização, e lições da história por fantasias.” (The New York Times, 19/2/2012).
O convívio com o auto-engano, por outro lado, impõe-se em defesa de valores intrínsecos de toda cinematografia que pretenda justificar sua existência. Para isso é preciso que rejeite o mimetismo do já consagrado e a burocratização dos meios de produção, através de apostas “no imponderável das quais dependem não só as maiores realizações criativas da humanidade como a esperança selvagem e inexplicável que nos alimenta, impulsiona e sustenta em nossas vidas,” nas palavras de Eduardo Giannetti.
Surdos, cegos e mudos, não iremos longe. E o debate, para ser profícuo, depende da nossa capacidade de admitir que nem sempre temos razão, e de reconhecer o valor de ideias alheias.