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A importância do cinema brasileiro

Patrimônio merece ser preservado e protegido, não destruído

Eduardo Escorel | 23 jun 2021_09h02
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“A nossa desimportância” é o título desalentado do manuscrito de Paulo Emílio Sales Gomes, escrito em 1964, que vem de ser publicado em Cinema e política, precioso volume de apenas 148 páginas. Além desse texto inédito, a coletânea reúne dezesseis  artigos, um manifesto e uma entrevista de Paulo Emílio, além de “Contra fato há argumento” – apresentação publicada sem assinatura, em 1973, no primeiro número da efêmera revista Argumento. A eloquente tomada de posição propõe “um esforço de lucidez”, após afirmar que “sempre haverá um papel a ser cumprido pelo intelectual que resolva sair da perplexidade e se recuse a cair no desespero”.

Paulo Emílio Sales Gomes – Foto: Divulgação

 

Poucos conjuntos de escritos seriam tão adequados quanto esse de Paulo Emílio para a coleção Grandes Ideias editada pela Penguin & Companhia das Letras – em cada frase há mais iluminações do que nas centenas de páginas de muitos tratados sobre cinema.

Uma vez lido “A nossa desimportância”, fica claro por que Carlos Augusto Calil atribuiu este título ao manuscrito incluído entre os demais textos que selecionou para Cinema e política – “Não resta dúvida”, escreve Paulo Emílio, “de que a nossa pouca importância nos deixa à margem dos acontecimentos. Eu compreendo o estado de espírito dos que se enciúmam em ver que a opinião, e eventualmente a polícia política, se interessam pelo que se passa no mundo teatral, radiofônico e televisionado das grandes capitais brasileiras e nem sequer tomam conhecimento da existência do cinema brasileiro. Das dezenas e milhares dos que em todo o Brasil foram convocados para depor, presos para investigações, se asilaram em embaixadas ou atravessaram a fronteira, ou que tiveram cassados seus direitos políticos, não constam nomes vinculados ao cinema brasileiro. Os bons espíritos poderiam imaginar que a corporação cinematográfica nacional fosse menos subversiva ou corrupta do que outras, mas ao que tudo indica não é disso que se trata. Tudo se explica, hélas!, pela nossa desimportância […] A polícia estava ocupadíssima, era obrigada a agir segundo um critério de prioridade, e não teve tempo para perdê-lo com o cinema brasileiro.”

Essa perspectiva ferina contém, sem dúvida, boa dose de amargor irônico, derivada em parte, talvez, da experiência pessoal de Paulo Emílio na juventude – preso em meio à repressão posterior aos levantes militares ocorridos em novembro de 1935, ele fugiu da Prisão do Paraíso em 1937, exilou-se e, de volta ao Brasil, atuou na luta contra o Estado Novo. De qualquer modo, considerar o cinema brasileiro inofensivo parece ser um juízo circunscrito ao imediato pós-golpe civil-militar de 1964 que os anos seguintes se encarregariam de atenuar, mesmo sem refutar de todo. 

Estaria aí a razão de Paulo Emílio, falecido em 1977, quando estava prestes a completar 61 anos, ter deixado de publicar suas breves considerações sobre nossa irrelevância? Tratando-se de alguém que se tornou defensor extremado do cinema brasileiro, é plausível supor que ele tenha considerado inconveniente publicar suas palavras quando foram escritas.

Conjecturas à parte, “A nossa desimportância” é um texto premonitório em mais de um sentido. Primeiro, por antecipar o que Roberto Schwarz veio a chamar, poucos anos depois, de “espécie de floração tardia” (“Remarque sur la culture et la politique au Brésil, 1964 – 1969″, publicado na revista Les Temps Modernes, n. 288, em versão original francesa); depois, ao intuir a situação deplorável em que, passados 57 anos, a atividade cinematográfica se encontra em nosso país – asfixiada e discriminada de modo deliberado, situação resultante de sermos considerados desimportantes pelo desgoverno federal e não termos sido capazes de reagir. 

Referindo-se aos anos 1969 e 1970, Schwarz cita alguns filmes do Cinema Novo realizados e lançados após o golpe civil-militar. Eles seriam “o fruto de dois decênios de democratização, que veio amadurecer agora, em plena ditadura”. São eles: O Desafio (1965) e Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) e Macunaíma (1969), Brasil Ano 2000 (1969) e Os Herdeiros (1970). 

Após o Ato Institucional nº 5, decretado em dezembro de 1968, a situação mudou, mas a verdade é que persistiu, até 1985, a convivência bizarra entre regime ditatorial e relativa liberdade de criação, acompanhada de embates seguidos com o Serviço de Censura de Diversões Públicas, subordinado ao Ministério da Justiça. Referindo-se ao “movimento cultural destes anos”, Schwarz descreve a hecatombe ocorrida, sem deixar de moderar pouco depois sua própria mirada apocalíptica: “A direita cumpre a tarefa inglória de lhe cortar a cabeça: os seus melhores cantores e músicos estiveram presos e estão no exílio, os cineastas brasileiros filmam em Europa e África, professores e cientistas vão embora, quando não vão para a cadeia.” 

É difícil imaginar que a partir do singelo ato de protesto contra a ditadura, feito em novembro de 1965, diante do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, Paulo Emílio tenha mantido na íntegra a posição que tomou em “A nossa desimportância”. Os manifestantes levantaram faixas de protesto pedindo liberdade e gritaram “abaixo a ditadura” quando o marechal Castello Branco, primeiro militar a se tornar presidente da República após o golpe de 1964, chegou para discursar na abertura da Conferência da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entre os oito presos na ocasião estavam Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Carneiro, cineastas em início de carreira. A partir daí, Paulo Emílio deve ter reconsiderado em parte o que havia escrito. Não era mais razoável dizer que o cinema brasileiro estava “à margem dos acontecimentos” etc.

Na nota introdutória da edição brasileira do artigo “Cultura e Política, 1964-1969 – Alguns Esquemas”, publicada em O Pai de Família e Outros Estudos (Paz e Terra, 1978), Schwarz escreve: “Mas para que substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que podem não estar menos equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contemporâneos é sempre mais vivo. Sobretudo porque a análise social no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e explicar uma experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico […]” – palavras com as quais imagino que Paulo Emílio estaria de acordo.

Sem negar de todo a desimportância relativa do cinema brasileiro, muito menos pretender superdimensionar sua importância, gosto de pensar que ele concordaria em afirmar que, entre acertos e erros, o cinema nacional merece respeito. O país tem, ou tinha até 2018, cultura e economia cinematográficas, expressas em filmes, publicações, festivais, atividades de ensino e preservação, mão de obra técnica e artística, empresas produtoras etc. Esse patrimônio merece ser preservado e protegido, não destruído. É um setor amplo e diversificado que faz jus ao investimento necessário para assegurar novas e contínuas realizações.

Li alguns dos artigos reunidos em Cinema e Política pela primeira vez quando foram publicados no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, no início da década de 1960. Aos sábados, nessa época, eu ia de lotação da Rua Humaitá até a banca do Mercadinho Azul, em Copacabana, só para comprar o Estadão. De volta para casa, lia com avidez e recortava o artigo sobre cinema, que nem sempre era de Paulo Emílio. Assim mesmo, prendia todos com fita adesiva nas páginas de um caderno de desenho. Completei dois conjuntos de recortes que emprestei um dia a um amigo, e ele nunca me devolveu. Foi preciso, então, esperar vinte anos para poder retomar a leitura reveladora desses e outros artigos de Paulo Emílio nos dois volumes editados pela Paz e Terra e Embrafilme (Crítica de Cinema no Suplemento Literário, 1981 e 1982).

Escrevendo sobre George Orwell, no final da década de 1950, Paulo Emílio afirma que “a sua denúncia desesperada do stalinismo e de outros totalitarismos terá contribuído para apressar o fim do tempo do pessimismo” (“O tempo do pessimismo”, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 1957). Quatro anos depois, sempre no Suplemento Literário, publica “Revolução, cinema e amor”, um de seus artigos mais fascinantes, no qual diz ser “a esperança, e a confiança que inspira, a responsável por outro fenômeno de muita significação para o cinema soviético, o de ruptura com atividades anteriores por numeroso grupo de homens de todas as idades”. O fim do pessimismo e a esperança são destacados como valores sociais dominantes, tanto no período pós-stalinista quanto nos primeiros tempos da revolução soviética.

Em 1954, Paulo Emílio esteve à frente da Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, embrião da Cinemateca Brasileira, surgida dois anos depois, e dedicou tempo considerável de sua vida à instituição que se tornou um dos centros de preservação e restauro de filmes mais importantes do mundo. Ele viveu intensamente os anos de esperança que precederam o golpe de 1964 e o pessimismo que se seguiu, no período em que a tortura de presos políticos se tornou instrumento oficial de repressão por parte do regime civil-militar no poder.

Hoje, em meio à pandemia e ao desgoverno federal, a Covid-19 já causou mais de 500 mil mortes no Brasil, continua fora de controle e a média móvel de óbitos por dia está acima de 2 mil; a Cinemateca Brasileira está fechada desde julho de 2020, e o acervo corre sério risco; o cinema brasileiro é considerado desimportante em seu próprio país – hoje, está cada vez mais difícil não ser pessimista e ter esperança.

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