Plantas híbridas são geradas a partir do cruzamento de duas variedades diferentes que, quando combinadas, resultam em seres maiores e mais resistentes. Algo parecido acontece em relação ao sistema imunológico humano: ele fica mais forte quando agrega tipos diferentes de imunidade, mostram dois estudos recém-publicados sobre as vacinas contra a Covid. Os resultados preliminares indicam benefícios em misturar imunizantes diferentes e mostram que a vacinação fortalece também quem já teve Covid – é a chamada imunidade híbrida.
Estudo da Universidade de Oxford publicado no dia 25 de junho na revista científica The Lancet mostra que a mistura do imunizante da Pfizer com o da AstraZeneca gera uma resposta imunológica eficaz contra o vírus. Mais ainda: os resultados preliminares da pesquisa apontam que, com um intervalo de quatro semanas entre as duas doses, a combinação da vacina da Oxford com a da BioNTech induz maior quantidade de anticorpos que apenas duas doses da AstraZeneca. Entretanto, a ordem de aplicação afeta os resultados, pois a combinação AstraZeneca + Pfizer produz anticorpos mais elevados e melhores respostas de células T do que Pfizer + AstraZeneca. Isso não quer dizer que a vacina da Oxford é menos eficaz. O estudo analisou os resultados imunológicos desses quatro esquemas vacinais. E ressalta que, embora a combinação de duas doses da AstraZeneca com intervalo de 28 dias tenha produzido a menor quantidade de anticorpos, os dados de ensaio clínico indicam que a vacina é 76% eficaz contra a doença sintomática e 100% contra casos graves.
“A mistura dessas vacinas surgiu como uma boa maneira de fornecer às pessoas a proteção de que elas precisavam quando havia problemas de segurança e de fornecimento”, afirma a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin nos Estados Unidos. Ela ressalta que os estudos mostraram como a combinação de AstraZeneca e Pfizer desencadeia uma resposta imunológica semelhante ou até mais forte que duas doses de qualquer uma das duas vacinas. Entretanto, ainda há uma hesitação por parte da comunidade científica devido à pequena escala dos ensaios. “A amostragem não foi o suficiente para testar o quão eficaz são essas combinações, pois os estudos olharam apenas a resposta imune. Ao que tudo indica, é seguro, mas ainda não tem uma pesquisa grande a longo prazo para determinar essa eficácia.”
Países como Alemanha, Canadá e Inglaterra recomendam a combinação de vacinas. Na semana passada, a Prefeitura do Rio de Janeiro autorizou a aplicação da segunda dose da Pfizer em grávidas e mulheres no pós-parto que iniciaram a vacinação com a AstraZeneca. Foi a primeira cidade no Brasil a recomendar a combinação de imunizantes contra a Covid-19. Em maio, o Ministério da Saúde suspendeu a vacinação com a AstraZeneca nesse grupo devido a eventos adversos raros.
Em uma situação como a do Brasil, na qual as grávidas se vacinaram primeiro com a AstraZeneca, mas não finalizaram o esquema vacinal, Garrett defende a conduta de utilizar o esquema heterólogo (vacinas diferentes), completando a vacinação delas com a Pfizer. O imunologista Daniel Mucida, professor associado da Rockefeller University, em Nova York, Daniel Mucida, também acredita que foi uma resolução prudente, mas alerta: “Eu acho imprudente a falta de controle disso. A intercambialidade tem que ser feita de maneira controlada e baseada em dados.”
O estudo publicado na Lancet foi realizado em fevereiro, na Inglaterra, com 830 pacientes maiores de 50 anos. Os dados divulgados são referentes ao intervalo de 28 dias entre a primeira e a segunda dose. Mas, no Brasil, o imunizante da AstraZeneca é administrado com um espaçamento maior, de 84 dias. O estudo também analisou os resultados da vacinação com esse intervalo maior, mas os resultados ainda não estão disponíveis.
“Na atual situação em que estamos, com a necessidade de imunizarmos o maior número possível de pessoas em menor tempo, o estudo é importante e traz informações relevantes. Ou seja, na ausência da vacina X, podemos dar a segunda dose da vacina Y”, afirma o professor do departamento de Imunologia da Universidade de São Paulo Jean Pierre Schatzmann Peron.
Por outro lado, Denise Garrett ressalta que, sem a existência de estudos com uma amostragem maior de pessoas, uma possível adoção da intercambialidade como política ampla no programa de imunização nacional é algo que ainda causa certa hesitação, porque não se tem nem uma eficácia determinada nem um acompanhamento dos pacientes a longo prazo. Os estudos realizados até agora indicaram mais efeitos adversos leves do que os observados na repetição de doses da mesma vacina, mas nenhum efeito grave. “Precisamos avaliar o perfil de segurança, porque cada uma dessas vacinas tem seu próprio perfil de efeitos adversos que podem se somar”, afirma a epidemiologista.
Em artigo publicado em 25 de junho na revista científica Science, o imunologista norte-americano Shane Crotty, do Instituto La Jolla, na Califórnia, analisa o poder da imunidade híbrida em pessoas que já contraíram a doença. Os dados do estudo apontam que uma pessoa que teve Covid-19 e foi vacinada apresenta respostas de anticorpos de 25 a 100 vezes maiores. Crotty lista ainda trabalhos de outros cientistas indicando conclusões similares. Segundo a pesquisa de Leonidas Stamatatos, professor do departamento de saúde global da Universidade de Washington, a vacinação elevou em aproximadamente 1000 vezes a resposta de anticorpos depois da primeira dose em pessoas que tiveram a doença. Tomados em conjunto, os estudos reforçam a importância de vacinar pessoas que tiveram Covid.
Segundo o imunologista Mucida, a vacinação de quem já foi infectado é benéfica para o indivíduo e para a população. “Os estudos apontam que com uma dose a pessoa que teve a infecção atinge basicamente a quantidade de anticorpos de quem foi vacinado com duas doses”, afirma.
Além disso, os dados obtidos até agora mostram que pessoas infectadas pela Covid, tanto assintomáticas quanto sintomáticas, apresentaram diante da vacina respostas imunológicas aumentadas, ou seja: a magnitude da proteção híbrida não é proporcional à gravidade anterior da doença. “Em termos da Covid-19, já vimos que a imunidade vacinal é mais duradoura, além de ser uma imunidade mais consistente”, afirma a epidemiologista Denise Garrett. Segundo ela, para as pessoas que já tiveram a doença anteriormente, uma dose da vacina provoca resposta equivalente à causada em quem não teve a doença e recebeu duas doses. É como se a doença valesse como uma aplicação. “Em situações de falta de imunizante, vacinar pessoas que já tiveram Covid com só uma dose seria uma opção para liberar quantitativos.” Entretanto, não houve nenhum estudo grande o suficiente para determinar o real nível de eficácia conferido com apenas uma aplicação de imunizantes que, como regra geral, exigem duas doses para completar o esquema vacinal – o que torna inviável a implementação desse método.
“Ainda estamos em um terreno um tanto pantanoso, sendo melhor garantir e vacinar a população com duas doses mesmo depois da infecção”, ressalta o imunologista Peron, da USP. Além disso, é preciso levar em consideração as variantes, já que estudos mostram a eficácia das vacinas contra determinadas cepas.