por ARMANDO FREITAS FILHO
A cena do menino correndo na rua, rente a uma grade negra, batendo com um pedaço de madeira ou ferro nas barras que soavam tal qual um refrão, um riff, uma rajada, com o curto intervalo entre um golpe e outro, nos quatrocentos golpes tantas vezes vistos e sentidos por ele na sala escura, terminou na praia onde o filme se fecha num fotograma fixo, que aproxima o semblante do personagem e o mar ao fundo – paralisados, enfim. Para onde vou, para onde vamos? A uma outra sessão de cinema, e ser acossado, correr noutro filme e noutra rua, até o limite do fôlego e da dor, para o bem e para o mal. Quem não está, então, funcionando direito: o espectador ou a projeção? O primeiro pisca rápido demais e as imagens na tela são entrecortadas por esse distúrbio? Ou é a máquina que picota e engole fotogramas com avidez? Nem uma coisa nem outra: é a mão taquigráfica de um suíço sui generis, sujo, sem banho, que só acredita no pulso dos seus relógios e os fabrica um atrás do outro a vida inteira, martelando cada Pateck para fazer de novo, novamente, um novo. O menino na praia olha para nós, na plateia, para sempre, cara por cara. O homem traído, alvejado pelas costas, cai no asfalto da cidade e só tem olhos e sestro (à la Humphrey Bogart) para quem o enganou, a beleza americana, até há pouco tempo entregue sob os lençóis, feita de pele e película, para poder xingá-la [?] por ser tão capaz de sortilégio e traição, e que também encara fixamente, interrogativa, a nós, testemunhas, agora, da última fala agonizante e mal-entendida, impossível de ser elucidada, sem deixar nenhuma dúvida, pelo tradutor inconfiável. A briga, a separação, começam aí, assim, entre dois filmes como que realizados a quatro mãos, até que a fita de celuloide que os unia, se parta e as luzes se acendam. Se ele não é como eu, se ele é como jamais poderei ser, ele me deve, ao menos uma fidelidade… impossível. Quando essa constatação se instala, o espelho perde o caixilho, deixa de ser especulação, e quebra, e vira o vero retrato de Dorian Gray no nosso quarto-forte irremediável, claustrofóbico e nauseante, onde não pode haver, fuga, cura, perdão. Quando se quer sair a chave está sempre com o outro. É Jean-Luc, louco, puro, com sua cara de trabalho alucinógena, com a barba por fazer como sempre, com um filme por fazer como sempre, com um incrível robe de chambre vermelho, chamuscado ou adamascado, e François, francês, cartesiano, escanhoado, de smoking ou de jaqueta de couro fashionentrando na sua faz de conta noite americana compreendido por todos. Só um agora é Incompreendido: o incompreensível relojoeiro maluco, que tem o seu pulso como seu relógio entranhado, como a duração do seu filme intérmino, intestino, que não tem hora para acabar, mesmo quando sua hora acabe e as luzes se apaguem. Para onde vou, para onde vamos, rever o que nos acossou? Não mais para o subsolo, onde ficava o extinto Cinema Riviera, sem saber direito, ainda, onde era o enguiço: se na sensação ou na máquina do mundo. O sentimento de embargo é o mesmo, a vontade de telefonar para um amigo, depois de ser acossado pelo Acossado em duas sessões contínuas, e falar, urgente, como falei há 50 anos, no telefone do bar, preto e pegajoso, com gosto de alho e hálito de caverna: “acabei de ver um filme de um tal de Godard que vai matar Bergman e Antonioni”. Se Truffaut disse depois “que há o cinema antes de Godard e depois de Godard”, não exagerava, nos meus vinte anos, em nada. Afinal, eu tinha acabado de ver, Michel Poiccard, aka, Laszlo Kovacs, o Cidadão Kane da minha geração, que no fim da vida e do filme, em vez de “Rosebud”, murmura, e o que se ouve, dubiamente, é: “C’est vraiment dégueulasse”*.