No final de novembro, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, será realizada a conferência internacional “Fotografia e cinema: 50 anos de , de Chris Marker”, promovida pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem e Instituto de História de Arte.
O interesse pela obra de Chris Marker não dá sinais de arrefecer. Ao contrário. Se em vida o empenho por um certo anonimato já o envolvia numa aura mítica, seu desaparecimento parece ter feito dele uma figura lendária e dado lugar ao surgimento do markerismo – não haverá cineasta ou espectador que, tendo visto seus filmes, e lido seus escritos, deixe de sonhar com seu regresso para continuar combatendo a mediocridade dominante no cinema.
Entre fontes primárias e secundárias, o site http://www.chrismarker.org/ relaciona cerca de 100 títulos, quer de autoria de Chris Marker, quer sobre ele e sua obra – é uma bibliografia imensa que tudo indica só tende a aumentar. Desse conjunto, tomo dois textos, meio ao acaso, para reler e comentar.
O primeiro é Imemória de Chris Marker, disponível também, em português, no catálogo da mostra Chris Marker – Bricoleur multimídia, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2009; o outro, é o artigo de Philippe Dubois, publicado em “Recherches sur Chris Marker”, Théorème 6 (revista do Instituto de Pesquisa sobre o Cinema e o Audiovisual, Presses Sorbone Nouvelle, 2006), trazendo em epígrafe declaração atribuída ao poeta e viajante, como Marker, Henri Michaux: “É preciso demolir a Sorbonne e colocar Chris Marker em seu lugar.”
Em Imemória, escrito para o CD-Rom, de 1997, Marker propõe considerar nossos fragmentos de memória em termos geográficos, contrariando a tendência destes “tempos megalomaníacos” nos quais temos a tendência a considerar nossa memória como uma narrativa em que “ganhamos e perdemos batalhas, encontramos e perdemos impérios”. “Obra-síntese”, como a qualificou Philippe Dubois, Imemória pode servir de introdução a La Jetée, mesmo tendo sido escrito 35 anos depois:
“Em toda vida encontraríamos continentes, ilhas, desertos, pântanos, territórios sobrepovoados e terrae incognitae. Traçaríamos o mapa de uma memória dessas e extrairíamos imagens dela com mais facilidade (e confiabilidade) do que dos contos e das lendas. Que o personagem dessa memória seja um fotógrafo e um cineasta não quer dizer que a memória dele seja mais interessante do que a de outro homem (ou mulher), mas apenas que ele deixou vestígios com os quais se pode trabalhar, contornos para desenhar seus mapas.”
A hipótese de Marker é que os vestígios (“cartões postais, recortes de jornal, catálogos, às vezes pôsteres arrancados dos muros”) traçam a “cartografia de um país imaginário”:
“Ao percorrê-lo sistematicamente estava certo de descobrir que a aparente desordem de meu imaginário escondia um plano, um mapa, como nas histórias de piratas.”
O CD-Rom seria a visita guiada à imemória, ou desmemória, de Marker que o visitante também poderia percorrer de forma aleatória.
A madeleine de Marker, ele escreve, é a heroína de Vertigo, mesmo sabendo que “pode estar forçando a mão ao atribuir a escolha desse nome à intenção de um roteirista no início de uma história que é essencialmente a de um homem em busca de coisas perdidas.”
Marker pergunta se “é possível que hoje [ao contrário do que a fotografia representava para Proust e sua geração], paradoxalmente, seja a vulgarização, a democratização da imagem que a permita alcançar o status menos ambicioso de uma sensação portadora da memória, uma variante visível do cheiro e do gosto. Sentimos mais emoção (de qualquer modo, uma emoção diferente) diante de uma fotografia amadora ligada à nossa própria história de vida do que diante do trabalho de um Grande Fotógrafo, por que o domínio dele faz parte da arte, e o propósito do objeto-souvenir permanece no nível mais baixo da história pessoal.”
Marker reivindica “para a imagem a humildade e o poder de uma madeleine.”
No CD-Rom, dividido em “zonas”, o “ponto” Madeleine está “localizado na interseção de Proust e Hitchcock”, escreve Marker. “Cada um deles por sua vez cruza com outras zonas que são tantas ilhas e continentes, dos quais minha memória contém as descrições, e meus arquivos, as ilustrações. Meu maior desejo é que haja códigos familiares suficientes no CD-Rom (o retrato de viagem, o álbum de família, o animal totêmico) para que o leitor-visitante possa imperceptivelmente vir a substituir minhas imagens pelas dele, e que minha Imemória sirva de trampolim para a própria peregrinação dele no Tempo Recuperado.”
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Do artigo de Philippe Dubois, retenho duas ou três coisas relacionadas a Henri Michaux.
“Há na ideia de jetée”, ele escreve, “numerosos efeitos de sentido específicos (um sentido marítimo de avançar maré a dentro, um sentido dinâmico ligado ao movimento, um sentido etimológico relacionando o termo ao campo léxico do jet – projeto, projeção, trajeto, rejeito) etc.
Além disso, podemos ver aí uma referência possível ao curto texto de Henri Michaux, cujo título é precisamente , publicado na coletânea La nuit remue.”
Em , de Michaux, o narrador doente sonha construir, aproveitando a névoa, uma jetée até o mar. Um velho, sentado como ele com as pernas penduradas, retira da água tudo que jogou fora durante anos. Destituído de memória, o narrador não lembra o que o velho tirou, mas algo que ele esperava encontrar estava perdido e atirou tudo de volta até que um último resto o arrastou para dentro do mar. E o narrador, “tremendo de febre”, não sabe como conseguiu voltar para a cama.
Em Michaux, escreve Dubois, “um velho que desaparece, arrastado pelo vazio de uma memória morta. Em Marker, é um menino que assiste sem saber à sua própria morte por conta de uma fixação viva demais da sua memória. E é um adulto que tenta (mas em vão) sobreviver retornando a esse ponto de fixação da sua memória viva.
Mesmo se o abismo engole tanto um, como outro, o olhar apagado da memória de um não deixa de se opor à incandescência da lembrança do outro, e à morte das imagens, Marker opõe a força da consciência.”
Sonho, jetée, memória, algo perdido, delírio – temas retomados em , de Chris Marker.
A volta a esses textos suscita uma aproximação imprevista. Se em , ao morrer, o herói revive um momento do seu passado, não haveria um elo com Terra em transe, cujo roteiro começou a ser escrito pouco depois por Glauber Rocha, e foi filmado em 1966? Sendo um combatente da megalomania, Chris Marker se opõe a Glauber Rocha. E em Terra em transe não se trata de reviver “um momento”, mas a vida inteira – do personagem e de um período histórico. Ainda assim, não haveria uma interseção entre os dois filmes? Os personagens principais dos dois filmes fazem uma viagem no tempo. O de La jetée, morre ao reviver um momento do passado. O de Terra em transe revive sua vida nos momentos que antecedem sua morte.
Chris Marker seria, dessa maneira, outro adepto da “filosofia do instante”, assim definida em A maçã do escuro, conforme a análise do romance de Clarice Lispector feita por Gilda de Mello e Souza (“Vertiginoso relance” em Exercícios de leitura):
“São momentos que não se narram, acontecem entre trens que passam ou no ar que desperta nosso rosto e nos dá o nosso final tamanho, e então por um instante somos a quarta dimensão do que existe, são momentos que não contam. Mas quem sabe se é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira […].”
Chris, Glauber e Clarice. Ilhas distantes que, ainda assim, talvez façam parte de um mesmo arquipélago.