A divulgação na semana passada de uma pesquisa de conclusões alarmantes reavivou a polêmica sobre os transgênicos. Um estudo de longo prazo constatou que ratos alimentados com milho geneticamente modificado tratado com herbicida tiveram maior incidência de tumores. Apresentados na imprensa ora como sinal inequívoco do risco da biotecnologia, ora como fruto de um estudo discutível, os resultados deixam no ar a dúvida sobre como se posicionar num debate em que parece não haver opinião isenta.
O estudo que motivou a polêmica foi realizado pela equipe de Gilles-Eric Séralini, da Universidade de Caen, na França, e publicado no último dia 19 na revista . A variedade de milho transgênico usada na pesquisa – NK603 – é produzida pela Monsanto, que também fabrica o herbicida ao qual ela é resistente (Roundup), também testado no estudo. Duzentos ratos foram acompanhados ao longo de dois anos, praticamente o tempo de vida dessa espécie. Estudos anteriores se limitaram a monitorar os animais por poucos meses – a liberação da produção comercial desse milho em vários países (inclusive o Brasil) se baseou nos resultados desses trabalhos.
Os resultados relatados no artigo são preocupantes. Entre os animais alimentados com o milho transgênico, de 50% a 80% das fêmeas desenvolveram tumores – a taxa foi de 30% no grupo de controle, que ingeriu apenas milho convencional. Dentre os que comeram transgênicos, até 50% dos machos e 70% das fêmeas morreram antes do que se esperaria, diante da sua expectativa de vida; nos animais de controle, a taxa foi de 30% entre os machos e 20% entre as fêmeas. A lista de efeitos inclui ainda problemas de fígado e rim nos animais alimentados com transgênicos.
Na imprensa francesa, os resultados do estudo foram comprados por seu valor de face, ao menos num primeiro momento. O jornal Le Monde relatou os resultados sem grande questionamento. O caso mais emblemático foi o da revista semanal Le Nouvel Observateur, que não hesitou em dar à sua reportagem de capa sobre o tema o título “Sim, os transgênicos são veneno!” A matéria concluía que, “para os transgênicos, a era da dúvida se encerra e começa o tempo da verdade”.
A cobertura acrítica foi influenciada por uma estratégia discutível usada na divulgação do trabalho. Conforme é a praxe no jornalismo de ciência, alguns repórteres tiveram acesso antecipado ao artigo que relata os resultados do estudo. No entanto, em contraste com a maioria dos casos em que esse sistema é utilizado, os jornalistas tiveram que assinar um termo de confidencialidade se comprometendo a não compartilhar o estudo com outros especialistas, que poderiam oferecer alguma perspectiva crítica ao trabalho.
O blog Embargo Watch, ao discutir essa estratégia, comparou a estenógrafos os jornalistas que se submeteram a esse sistema. Ao comentar o caso em seu blog, o jornalista americano Carl Zimmer escreveu: “Esse é um meio repugnante e corrupto de escrever sobre ciência. Pega mal para os cientistas envolvidos, mas (…) também para a nossa profissão.”
Uma vez publicado o artigo, vieram à tona críticas de pesquisadores não envolvidos com o estudo. Em entrevista à agência Reuters, um cientista britânico questionou os métodos estatísticos usados na análise e lembrou que a variedade de ratos escolhidos para o estudo é especialmente propenso a desenvolver o tipo de tumores observado no estudo.
Em reportagem do New York Times, o especialista em ciência alimentar Bruce Chassy estranhou que nenhum efeito similar tenha sido observado nos animais que se alimentam de transgênicos há anos. “Não se trata de uma publicação científica inocente”, acusou. “Trata-se de um evento de mídia bem planejado e habilmente orquestrado”.
Séralini foi criticado também por lançar o estudo na mesma época em que põe nas livrarias o livro Tous Cobayes! (‘Todos cobaias!’), em paralelo ao lançamento de um documentário homônimo dirigido por Jean-Paul Jaud.
Na América Latina, a cobertura foi acrítica, segundo apontou análise do KSJ Tracker. No Brasil, os três maiores jornais diários não têm em seus sites notícias sobre o estudo. Na cobertura dos portais na internet, baseada principalmente em despachos de agências noticiosas internacionais, as críticas feitas ao estudo nem sempre foram lembradas.
Entidades brasileiras alinhadas com a defesa dos transgênicos, como o Conselho de Informação de Biotecnologia, questionaram a credibilidade da pesquisa. Já o biólogo Jean-Remy Davée apresentou o estudo como um divisor de águas do debate sobre a segurança dos transgênicos em sua coluna na Ciência Hoje On-line. O colunista citou as principais críticas ao estudo e concluiu que “não existem publicações inocentes, nem cientistas inocentes. A não ser, talvez, aqueles que creem que as indústrias nos contam tudo sobre seus produtos, não compram apoios científicos, políticos e midiáticos e não tentam calar os eventuais dissidentes”.
Foram poucos os relatos que apresentaram a reação dos autores às críticas. Num blog do Guardian, John Vidal sistematizou as respostas de Séralini aos principais questionamentos. O líder do estudo alegou que o tipo de ratos usado na pesquisa é o mesmo empregado nos outros estudos sobre o impacto dos transgênicos e se dispôs a trazer a público os dados brutos de seu estudo – desde que a Monsanto faça o mesmo com os resultados dos estudos que levaram à liberação do milho NK603 na Europa.
O estudo foi publicado num periódico respeitado e submetido à avaliação por outros cientistas da área. À Nature, o editor da alegou que o trabalho não suscitou alerta especial durante a revisão.
A divergência de pontos de vista “autorizados” sobre uma questão sensível como a dos transgênicos é frustrante, especialmente para o leigo. Num debate em que as partes envolvidas parecem todas ter uma agenda bem definida, mas nem sempre transparente para o público, é complicado saber que credibilidade dar a cada argumento.
Nesse ambiente de incerteza, é saudável a notícia de que o estudo vai ser auditado pela Autoridade Europeia de Segurança Alimentar e por outras agências, conforme anunciado no auge da polêmica. Que se concorde ou não com o estudo, seus métodos e resultados, parece razoável apoiar a recomendação final do artigo, em que os autores propõem que transgênicos usados na alimentação e os pesticidas sejam “avaliados muito cuidadosamente por estudos de longo prazo para medir seus efeitos tóxicos”.
(foto: Ian Hayhurst – CC 3.0 BY-NC-SA)