Todo dia, a médica Cristina Matushita realiza, em média, setenta procedimentos que envolvem algum tipo de material radioativo. Matushita é médica nuclear, especialidade da medicina que usa os chamados radiofármacos (substâncias com radioatividade) para exames de diagnóstico ou tratamentos de pacientes com câncer. Na segunda quinzena de setembro, a médica, como muitos de seus colegas, viu minguar o movimento naquele setor do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer): foram apenas dez pacientes diários. Não por falta de interesse ou de pacientes, mas por falta de insumos. Não havia radiofármacos para os procedimentos. O Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e responsável por 85% da produção brasileira de radiofármacos, reduziu a fabricação dos compostos até parar totalmente a produção no dia 20 de setembro, por falta de dinheiro.
Em 2021, o Ipen sofreu um corte expressivo de 45% no orçamento – no ano passado, o Instituto recebeu 165 milhões de reais. Já neste ano, até agosto, o governo federal repassou pouco mais de 91 milhões de reais. De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear, em todo o país, cerca de 9 mil pacientes foram afetados por dia com o desabastecimento dos radiofármacos. Só na cidade de São Paulo, pelo menos 3,1 mil pessoas estão na fila de espera para fazer pelo SUS procedimentos que usam esse tipo de insumo. É uma fila que cresce um pouco a cada mês – eram 2,9 mil pessoas em agosto e 2,7 mil em julho. Em dois meses, o número de pacientes na fila cresceu 13%.
Depois da paralisação na produção dos radiofármacos do dia 20 de setembro, o governo federal liberou 19 milhões de reais – e a fabricação foi restabelecida no dia 1 de outubro. A verba garantiu a produção por duas semanas. No dia 7 deste mês, foi aprovado no Congresso o Projeto de Lei Nacional 16/2021, que liberou 63 milhões de reais para a produção do Ipen. O projeto aguarda resposta do presidente Jair Bolsonaro, que tem quinze dias desde a aprovação no Congresso para sancionar ou vetar. Entretanto, mesmo se for liberado o dinheiro do PLN, ainda faltarão 26,7 milhões de reais para completar os 89,7 milhões necessários para que o instituto continue a fabricação de radiofármacos até o fim do ano.
De acordo com Matushita, diretora científica da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), na próxima semana o Brasil inteiro não receberá radiofármacos devido à falta de verbas e à produção inconstante do Ipen. Se o presidente não sancionar a lei aprovada no Congresso nos próximos dias, segundo ela, corre-se o risco de não haver o medicamento na semana de 25 de outubro e no início de novembro.
Especialidade cara e de alta complexidade, a medicina nuclear é responsável por orientar a utilização de radiofármacos em exames diagnósticos e tratamentos, além de auxiliar em alguns procedimentos cirúrgicos. Um dos radiofármacos mais comuns é o tecnécio, utilizado nas cintilografias. Diferente dos exames radiológicos, a cintilografia capta a anatomia e função dos órgãos a partir de emissões vindas de uma pequena quantidade de material radioativo injetado no paciente. A cintilografia mais solicitada é a do miocárdio, o músculo cardíaco. Esse exame pode detectar doenças cardiovasculares, como doença arterial coronariana e infarto do miocárdio. Atualmente, esse grupo de patologias é o que mais mata no Brasil – pelo menos 400 mil morrem por ano, o que representa 30% dos óbitos.
Na capital paulista, pelo menos 1,8 mil pacientes estão na fila de espera para agendar pelo SUS a cintilografia de miocárdio, e isso representa 60% das pessoas à espera de procedimentos que utilizam radiofármacos no município. De acordo com Matushita, o exame é feito, por exemplo, para detectar a causa de dores no peito – sintoma associado a vários motivos, desde ansiedade até uma falha de irrigação sanguínea. O procedimento tem como objetivo avaliar o fluxo do sangue nas artérias que nutrem o músculo cardíaco. Os pacientes que já infartaram precisam manter um acompanhamento e fazer o exame anualmente, assim é possível ter um diagnóstico precoce de novos problemas de circulação e evitar uma nova ocorrência. Outra cintilografia bastante comum é a óssea, utilizada tanto para identificar metástase, quando as células cancerígenas atingem outras regiões do corpo distintas de onde os tumores surgiram, quanto para visualizar a densidade da lesão óssea.
A medicina nuclear também é fundamental em alguns tratamentos de câncer, entre eles a iodoterapia, usada contra o câncer de tireoide, e no uso de radiofármacos nas terapias contra o câncer de próstata e tumores neuroendócrinos. Antes da iodoterapia, por exemplo, os pacientes com câncer de tireoide têm que fazer um preparo de um mês, com uma dieta bastante restrita. No InsCer, sem radiofármacos para esse procedimento, os pacientes precisaram ser remarcados, segundo a médica Matushita. “Deixarmos de produzir os radiofármacos prejudica pacientes que estão em tratamento de câncer e condena-os à ausência de tratamentos eficientes e eficazes”, afirmou Manoel Carlos Leonardi, oncologista clínico da Beneficência Portuguesa de São Paulo e integrante do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer.
De acordo com Leonardi, dos pacientes em primeira consulta oncológica, tanto do SUS quanto do sistema privado, cerca de 20 a 30% precisam realizar exames que utilizam radiofármacos. Um dos procedimentos feitos pelo oncologista para a detecção de cânceres é a Tomografia Computadorizada por Emissão de Pósitrons (PET-CT). “Deixar de produzir essas substâncias é deixar de tratar pacientes que dependem dos radiofármacos e deixar de fazer exames. Ou seja, é atrasar tanto o tratamento quanto o diagnóstico e condenar esses pacientes à morte”, acrescenta Leonardi. Segundo o médico, existem estudos que mostram que o exame PET-CT é superior à tomografia para detectar alguns tipos de tumores.
A fila de espera de pacientes que aguardam a realização de exame diagnóstico ou tratamento não diminuirá tão cedo. A médica nuclear Cristina Matushita explica que cada clínica pode utilizar semanalmente uma quantidade máxima de radiação. “Meu cálculo de agenda é feito a partir do cálculo de radiação que eu posso usar. Então não adianta acumular paciente e depois correr atrás deles para diminuir a fila que foi formada, porque eu não posso pedir uma quantidade maior do que eu sou autorizada a usar.”
No dia 29 de setembro, devido ao risco de desabastecimento em território nacional, a Anvisa aprovou a importação temporária de radiofármacos – medida excepcional válida até 31 de dezembro. O oncologista Leonardi, da Beneficência Portuguesa, identifica problemas de logística nas importações desses medicamentos, pois as substâncias radioativas têm um tempo de meia-vida muito curto, de cinco a seis dias, e isso dificulta o transporte do material de outros países. Meia-vida é o tempo necessário para que a atividade de uma substância radioativa seja reduzida pela metade. “Essa situação de falta de radiofármacos é bastante preocupante. É um descuido com a saúde de todos, porque isso não vai acometer só os pacientes que dependem do SUS, vai acometer todos os brasileiros.”