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Ir ao cinema, hábito trivial

O que se impõe é impedir atividades não essenciais, como frequentar salas de cinema

Eduardo Escorel | 01 set 2021_09h01
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A partir de hoje, quarta-feira, 1º de setembro de 2021, o antigo hábito trivial de ir ao cinema deixa de ser simples no Rio de Janeiro. Decreto do prefeito Eduardo Paes, publicado em 27 de agosto, torna obrigatório apresentar a carteira de vacinação digital do Conecte SUS, a própria caderneta física ou um papel timbrado da Secretaria de Saúde, atestando estar vacinado, ou seja, ter tomado duas doses ou vacina de dose única (quem só tiver tomado a primeira dose deve mostrar que ainda não chegou a data marcada para receber a segunda). Exigência imposta também para ir a teatros, salas de concerto, salões de jogos, circos, recreação infantil e pistas de patinação, além de outros locais de uso coletivo.

O prefeito é um político irrequieto que confunde agitação com eficiência. Lança calendários de vacinação sem ter meios para assegurar que terá doses suficientes para cumprir o que foi planejado. Daí as interrupções e adiamentos, cuja responsabilidade ele é o primeiro a atribuir, com razão, ao Ministério da Saúde. Considera ter feito a sua parte, pressiona o governo federal e lava as mãos, posando de laborioso.

Na tentativa de agradar exibidores e distribuidores de cinema, além de outros prestadores de serviços, empresários de espetáculos de diversões públicas, atividades culturais, esportivas e de lazer, o que o prefeito confirma é sua própria inoperância, ao não ter tomado a tempo medidas restritivas duras, mas eficazes, baseadas no conhecimento científico e no bom senso, e agora se deixa levar por seu temperamento festeiro, tão otimista quanto precipitado.

Alguém realmente acredita ser possível fiscalizar, de fato, o acesso aos cinemas e o cumprimento das medidas sanitárias adicionais? A norma estabelecida em nome da proteção, na verdade, estimula agrupamentos em espaços fechados com ar condicionado e reforça irresponsabilidade semelhante a quem promove festas clandestinas, reúne-se nas calçadas em frente a bares e faz parte da multidão que lota praias.

O que se impõe é impedir, não estimular, festejos e atividades não essenciais, como frequentar salas de cinema. Além disso, em âmbito nacional é preciso acelerar a vacinação e promover campanhas educativas incentivando as conhecidas ações protetivas – máscara, uso de álcool em gel e evitar aglomerações.

É estranho, portanto, que o prefeito do Rio tente regular e promover a ida ao cinema na cidade que vem sendo chamada de “epicentro da circulação da Delta no país”, onde as internações aumentaram 63% em um mês, entre 22 de julho e 22 de agosto. A advertência de Miguel Nicolelis, feita em pronunciamento recente (27/8), é clara:

…nós estamos entrando numa outra fase crítica, o Rio de Janeiro já está mostrando isso […] A variante Delta, que é uma modificação do vírus, uma modificação mais grave do vírus, tomou conta do Brasil. Ela está se disseminando numa velocidade impressionante […] E, aqui no Brasil, tudo leva a crer que em setembro nós vamos ter a mesma coisa [que está acontecendo nos Estados Unidos e em Israel, onde o país está sendo fechado novamente […] porque não conseguiram conter a Delta]. Então, a primeira coisa que tenho a alertar a vocês é que, infelizmente, do ponto de vista sanitário e médico, não há como aumentar as aglomerações neste momento […] A variante está pegando até pessoas com duas doses da vacina, no Brasil […] E, como vocês sabem, nós estamos extremamente atrasados na nossa cobertura vacinal […] O Brasil é o único país do mundo em que estamos tendo que combater uma pandemia e um pandemônio político ao mesmo tempo. Mas a pandemia, acreditem se quiser, a pandemia ainda tem que ser considerada a prioridade na nossa visão, porque senão nós vamos ter a mesma coisa que está acontecendo nos Estados Unidos […] Final de setembro, nós provavelmente vamos ter uma nova explosão aqui. E nós temos que estar preparados para isso. Nós não podemos baixar a guarda. Não podemos achar que a pandemia acabou, que nós podemos abrir, que nós podemos remover o uso de máscaras, acabar com o isolamento social. Nós estamos cometendo o mesmo erro que a Inglaterra e os Estados Unidos cometeram […] (íntegra disponível em https://www.instagram.com/tv/CTDaZXygzDi/?utm_medium=share_sheet ).

Advogando em causa própria, em defesa das salas de cinema, Jeff Goldstein, presidente de distribuição doméstica da Warner Bros, assegurou em 24 de agosto aos participantes da CinemaCon – convenção oficial da National Association of Theatre Owners –, no Caesars Palace de Las Vegas, que “ir ao cinema está pura e simplesmente no nosso DNA, e isso nunca vai mudar. Isso não será reproduzido [em outra mídia] de forma alguma”.

Registre-se que a apresentação de uma hora dos diretores da Warner foi gravada previamente e projetada em uma telona do Colosseum Theatre.

Cena do filme “Mestres da terra” (2021) – Foto: Divulgação

 

Talvez ainda seja possível considerar que ir ao cinema está no DNA de quem tem mais de 40 anos e, mesmo assim, olhe lá. Para os mais jovens, porém, a afirmação de Goldstein deve parecer bizarra. A intenção da frase de efeito deve ter sido apaziguar a insatisfação dos donos de cinema, causada pela própria Warner no final de 2020, quando a distribuidora lançou seus filmes nos cinemas e na plataforma de streaming HBO Max, sem a tradicional defasagem de tempo entre um lançamento e outro.

Levando em conta a expectativa quanto aos efeitos entre nós da variante Delta no futuro próximo, é chocante ver o funcionamento de salas de cinema ser tratado como se fosse uma atividade essencial comparável às assim definidas, o que dá margem à atuação de gestores, como o prefeito do Rio, em defesa dos interesses privados de distribuidores e exibidores.

Será realizada online e gratuitamente, de 6 a 30 de setembro, a 7ª edição do DOBRA – Festival Internacional de Cinema Experimental, com oito programas temáticos, exibindo 42 filmes selecionados a partir das mais de 1 mil inscrições, sendo 23 produções brasileiras. Segundo o release do DOBRA, “a curadoria do Festival, formada por Cristiana Miranda, Lucas Murari e Luiz Garcia, identificou temas que se destacaram no trabalho dos artistas, tais como questões políticas, a busca por uma representação do espaço-cidade e do espaço-corpo, a criação de uma poética que responda à necessidade dos artistas de se manterem ativos diante do longo período pandêmico e a uma arqueologia da América Latina”. Local: www.festivaldobra.com.br . Informações: dobrafestival@gmail.com

Tive oportunidade de assistir a dezesseis dos filmes a serem exibidos, subdivididos em três dos programas temáticos. Em Arqueologias Latinas – poeira e encontros, Hipóteses sobre a Guerra (2020), de Pablo Rivas, tenta recuperar um percurso pessoal e a trajetória política do Chile; República do Mangue (2020), de Julia Chacur, Priscila Serejo e Mateus Sanches Duarte, traz vestígios de imagens preciosas em que o magnetismo do olhar das mulheres para a câmera preserva toda sua força; Desarquivar (2020), de Cecilia Araneda, parece dever algo à lição de Harun Farocki, em sua tentativa de recuperar, mais uma vez no Chile, memória pessoal e histórica. Em Modernidade urbana – linhas de rua, linhas de fuga, programa só de filmes brasileiros, são arrebatadoras as imagens da inundação em Belo Horizonte de Cidade Submersa (2020), de Bárbara Lissa. No programa Vanguarda ou o cinema na linha de frente, Mestres da terra (2021), do belga Jan Locus, alia beleza e desolação nas imagens da desertificação na Mongólia. Entre os filmes a que assisti é o que mais se destaca. Finalmente, vale mencionar Vozes para o Futuro (2021), de Carla Romero e Isabela Couto, algo ingênuo, mas nem por isso menos tocante, vídeo-carta de Angela Mendes para seu pai, Chico Mendes – filme que valoriza texto e voz acima de tudo, com poucas, mas excelentes inserções de arquivo.

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