Desde o primeiro dia de 2012 os estudiosos e biógrafos de James Joyce estão finalmente autorizados a citar livremente o conteúdo de suas cartas, que caíram no domínio público 70 anos após a morte do grande escritor. Seus textos podem agora ser mencionados ou publicados sem correr o risco de um processo de seu neto alucinado, Stephen Joyce, que durante décadas proibiu a citação e a publicação de escritos e cartas de seu avô, ou de membros de sua família.
A carta, do início dos anos 1930, reproduzida nesta página é rica em preciosas informações, mas mostra sobretudo o carinho e a intimidade com que Joyce se correspondia com amigos próximos.
A carta é dirigida a Herbert Hughes, um compositor e musicólogo nascido em Belfast, irlandês como Joyce, de quem foi um dos amigos mais próximos.
Hughes organizara um concerto para o qual Joyce pede na carta que sejam enviados convites para alguns amigos seus, entre os quais o grande poeta T.S. Eliot e sua benfeitora Harriet Weaver, que praticamente o sustentou durante anos, apenas devido à sua enorme admiração pela obra de Joyce.
O grande escritor menciona em seguida um banquete de 350 pessoas que a comunidade americana de Paris pretende dar em sua homenagem, e que só aceitou “porque os americanos me ajudaram muito na época da proibição de Ulisses”.
Joyce refere-se em seguida ao enviado irlandês, o Conde O’Kelly que pediu para estar presente, o que surpreendeu e lisonjeou o escritor, sempre sedento de reconhecimento por parte da Irlanda.
Mas o fulcro da carta é o presente que Joyce envia a Hughes: uma rara primeira edição da ópera composta e escrita por Jean-Jacques Rousseau, “o Adivinho do Vilarejo”, publicada em 1753 (O exemplar está hoje conservado numa biblioteca americana, e leva a seguinte dedicatória: “Para Herbert Hughes, de Belfast, de James Joyce, de Dublin”).
Joyce sentia-se particularmente próximo de Hughes como fica claro na brincadeira que faz na carta usando o nome de Rousseau: “O compositor desta obra é uma personalidade naturalmente mais conhecida como escritor, mas seu nome já foi muito associado ao meu, e porque ambos somos J.J., enquanto você é H.H., isso quer dizer que existe apenas um ponto de dado entre nós”.
Joyce confirma esta frase feliz a respeito da proximidade com seu amigo, ao assinar esta carta “James Deuce” que em inglês soa vagamente como “James Joyce”, mas significa, sobretudo, um lado de dado com dois pontos, cada um simbolizando um dos amigos.
Muitos outros detalhes mereceriam ser mencionados nessa densa carta de três páginas, especialmente a frase final, quando Joyce manda “meus agradecimentos especiais por todo o trabalho que você teve com este “joyce de livro”, frase na qual “este joyce de livro” assume claramente o sentido de “esta droga de livro”, (ou “esta joça de livro”), referindo-se à sua própria obra-prima “Ulisses”.
Compreender plenamente Joyce foi sempre o maior desafio para seus tradutores e até mesmo suas cartas se prestam a interpretações infinitas.
Quase todas estão hoje conservadas em arquivos de universidades ou museus, e as que se tornaram disponíveis para colecionadores nas últimas décadas são muito raras.
O livreiro americano de quem esta carta foi adquirida não compreendeu a afetuosa brincadeira, e leu a assinatura como James Weaver, como se Joyce se identificasse com o sobrenome de sua benfeitora. Uma leitura mais cuidadosa permite agora restabelecer, para James, o “Deuce” como sobrenome escolhido de sabor tão joyceano.