Uma faceta surpreendente da personalidade de Godard (1930 – ) emerge das suas duas conversas com Marcel Ophuls (1927 – ), ocorridas com sete anos de intervalo, a primeira, em 2002, no cinema Le Méliès, de Pau, no sudoeste da França, e a mais recente, em 2009, no teatro Saint-Gervais, de Genebra. O pequeno volume , publicado em 2011, além da transcrição dessas conversas, inclui o artigo “Meu amigo Godard”, de Daniel Cohn-Bendit.
O belicoso Godard, conhecido por sua severidade, dá lugar nessas páginas a um homônimo fraterno e generoso. Conhecidos há quase cinquenta anos, embora distantes em 1968 – um, maoista, o outro, socialista – Godard e Ophuls são “unidos por uma verdadeira amizade”, conforme escreve no prefácio o historiador, professor e realizador Vincent Lowy, autor de um livro dedicado a Marcel Ophuls, editado em 2008.
Para Godard, os movimentos de câmera de Max Ophuls são “absolutamente inimitáveis – pode-se copiar certos travellings, certas coisas, e eu não deixei de fazer isso”, ele confessa, “mas há nesses movimentos alguma coisa além da técnica […] que talvez permita não ter um assunto. Ou de não ter necessidade de um assunto profundo […].”
“No cinema de Max Ophuls”, segundo Godard, chega um momento em que não há literatura, não há texto, […] não há sequer uma partitura como na música. Há alguma coisa diferente.”
Marcel, filho de Max Ophuls, a certa altura, dá uma aparente guinada na conversa ao evocar um encontro, em Nanterre, no ano de 1967, com Michel Cournot (1922-2007), jornalista e crítico de cinema da revista Le Nouvel Observateur, no qual Godard teria dito, “com muita calma, haver duas maneiras de um cineasta considerar escadarias. Há os que têm uma escadaria na cabeça e a fazem construir, e há os que encontram uma locação com uma escadaria e constroem seu filme em torno de uma escadaria já existente”.
Godard provoca risos da plateia ao dizer que não lembra de ter dito isso. Mas logo depois se corrige, reconhecendo ter dito, sim. Segundo Marcel Ophuls, Godard concluira dizendo “ter grande respeito pelos que imaginam escadarias e têm meios para fazê-las serem construídas” – acreditava que Godard dissera isso por que estava diante do filho de Max Ophuls.
Godard diz “falar com muito pouca gente e, vivendo muito isolado, não tem muitas relações com o que se tornou o meio de cinema. […] Eu sofro muito por falar pouco, debates como este, sempre sofro depois, acho isso muito fraco, pouco vivo, gentil mas só, eu me digo que eu fiz 1800 quilômetros [de Rolle, perto de Genebra, até Pau, no sudoeste da França, perto da fronteira da Espanha, onde o debate ocorreu no cinema Le Méliès] para vir, e 1800 quilômetros para voltar, e sobrará o que para mim? O objetivo não era vir aqui, então acompanho Marcel de bom grado”.
O que Godard acha muito difícil é o debate, não a conversa com Marcel Ophuls, para a qual tem boa disposição. Mas “tendo conhecido o nascimento ou, melhor dizendo, a adolescência dos cine-clubes, eu acho muito limitada a possibilidade de debater tão depressa depois de um filme ou de dizer alguma coisa.[…] acho bem mediano o debate que houve entre nós, isso não é um debate, algumas perguntas às quais respondemos polidamente. […] Eu disse do que gosto de Max Ophuls, para ir mais longe, seria preciso muito mais… Dizer que a natureza é verdadeira em Partie de campagne [Um dia no campo, Jean Renoir, 1936], é falsa em Max Ophuls, mas essa falsidade é mais verdadeira que a verdadeira ou coisas como essa…Não, estou contente que este cinema vá bem, segundo me disseram, enquanto o cinema de arte e ensaio está em dificuldade, mas efetivamente, se Amélie le Poulain (sic) [O fabuloso destino de Amélie Poulain, de Jean-Pierre Jeunet, 2001] foi classificado como filme de arte e ensaio, não há nada mais que nos deva surpreender…”. [fim parte I]