Sete anos depois do encontro em Pau, Godard e Ophuls retomaram a conversa, agora em Genebra.
Depois do fracasso do seu segundo longa-metragem, Feu a volonté (1965), com Eddie Constantine, que estreou no mesmo dia de Alphaville, Ophuls precisava, nas suas próprias palavras, por a “marmita para ferver”. Era casado, tinha filhos, “era preciso fazer alguma coisa, continuar” e então se tornou documentarista.
Trabalhando para a ORTF [rádio e televisão francesa], fez seu primeiro documentário histórico, em 1967, sobre o Acordo de Munich [tratado assinado pelo Reino Unido, França, Alemanha e Itália, em setembro de 1938, permitindo à Alemanha anexar territórios da Tchecoslováquia próximos à fronteira alemã. Conhecido também como a traição de Munich, pelo fato de Tchecoslováquia sequer ter sido convidada a participar, é considerado uma tentativa fracassada de apaziguar a Alemanha], nas palavras de Ophuls, “cabeças falantes com arquivos”, tendo duração de três horas e meia –Munich, ou La Paix pour cent ans (Munich, ou a paz por cem anos). A ideia de fazer uma continuação levou à feitura de Le chagrin e la pitié (A tristeza e a piedade, 1969).
Ophuls confessa que teria gostado de voltar ao “verdadeiro cinema”, o que Godard acha um comentário interessante e Ophuls completa dizendo que tinha o sentimento de estar “embarcado num cinema menor”.
Para Godard, porém, não se deve opor documentário e ficção. Hotel Terminus, de Ophuls, “é os dois” e o que “o interessava é quando você cruzou, se ouso dizer, a linha de demarcação” entre os gêneros.
Acontece, diz Ophuls, “que sou filho do meu pai e eu gosto de filmes com atores, me parece não serem tão insatisfatórios, de certa maneira, mais divertidos… e talvez, não tendo vindo ao documentário de modo inteiramente livre – nesse gênero que nem sempre é menor mas pode ser menor com facilidade – tentei cada vez mais que os personagens sejam como personagens de ficção.”
MO: “Havia uma controvérsia, de qualquer modo, quando você veio me ver na minha horta. Fizemos o tour dos feijões e dos tomates, você tinha vindo de longe para ver se podíamos fazer um filme juntos sobre o Oriente Médio.”
JLG: “O que me interessava na época era fazer um filme que se chamaria apenas ‘ser judeu’. Eu tinha vontade de perguntar, já é alguma coisa: o que quer dizer para mim ser protestante? Eu protesto contra o Centro de cinema, ou protesto contra a proibição de fumar em Genebra. (risos) Mas ser protestante, isso não tem sentido. Ora, eu sinto que há um certo número de pessoas, até mesmo todo um povo, para o qual ser judeu não é a mesma coisa que ser francês, alemão ou suiço. Parece-me que ser judeu é bem diferente do que ser alemão, ou ser escritor, e é por isso que, nestes tempos, tenho muita relutância em usar o verbo ser [être], se quiserem. Essa é a história do nosso encontro quando eu fui vê-lo [em 2002], o que ninguém fazia, aliás, na época. Quando fui vê-lo na sua pequena casa, perto da estrada de ferro que você havia percorrido com seu pai.”
MO: “Ser judeu. Penso que no século vinte, era sobretudo uma questão de destino. Eram os outros que decidiam o que se era e o que não se era. Você me disse com clareza que era essa a questão fundamental enquanto fazíamos o tour da horta? Não?”
JLG: “Não, com certeza, não. Eu não era capaz. Mas era exatamente…”.
MO: “Não é difícil, simplesmente, você talvez não quisesse ser claro demais…[…] Nossa memória é sempre um pouco seletiva, mas a de Jean-Luc às vezes é seletiva e conscientemente seletiva. (risos) Quando você veio me ver, foi para me propor…Não em parece que era sobre a condição de ser judeu ou não ser judeu. Era eu creio, precisamente, sobre a Palestina e Israel.”
A conversa continua, tratando do que François Truffaut chamou de “política dos autores” – a “noção de autor não existe. Era um erro”, diz Godard, e ainda: filmes de encomenda – “se você tem um dólar, você pode fazer um filme de um dólar”; o melhor livro já escrito sobre cinema é Seis lições sobre o som e o sentido, de Roman Jakobson. Para Ophuls, é a autobiografia de Frank Capra, e ainda: marginalização – “é preciso não se marginalizar deliberadamente”. Querer ou não ser produtor – “essa é a grande diferença entre nós”, diz Godard. Para ele, o produtor pode ter controle, o metteur en scène, não. Como metteur en scène “eu ficava reduzido, ou a mendigar ou a aumentar o orçamento, o que muita gente faz”.
MO: “Foi Bertrand Tavernier quem também me dizia: ‘A época do seu pai, dos grandes senhores, terminou, se não se quer mendigar, se o que se quer é preservar sua independência…’ (silêncio). Procuramos discordâncias, mas, de fato, estou totalmente de acordo com Jean-Luc Godard. Como digo sempre, eu errei e fiz uma armadilha para mim mesmo.[…]
Para Godard, o cinema continua sendo a medida, o valor supremo: “Para mim, a honestidade passa antes pelo filme. Pelo cinema. Judeu, política, ou o que você quiser, meu termômetro ou meu instrumento de medida é o cinema. Que filme ele fez? Quando? Em que época?…E coisas assim. Eu gosto dele, eu não gosto dele? Se não gosto dele, eu desconfio dele. Se eu gosto…[…] Eu posso assegurar cem mil ou duzentos mil francos suiços, posso fazer um empréstimo…Isso é suficiente para garantir a viagem, o vídeo não custa nada […]
MO:”Podemos talvez voltar a falar disso, então…(risos) nos próximos dias…
JLG: “Mas está feito…” (aplausos)
O filme a quatro mãos cogitado não foi feito. E essa transcrição resumida termina com um comentário nada eufórico:
MO: “A tristeza e a piedade, somente em salas de cinema na França, tinha feito seiscentos mil ingressos. Veillés d’armes [Documentário de Marcel Ophuls, feito em 1994, sobre o jornalismo em tempo de guerra, tendo como pretexto inicial os repórteres que cobrem a guerra da Bosnia] fez dezenove mil (suspiro). Então é verdade que eu gostaria de poder voltar a trabalhar mas o mínimo que se pode dizer é que esse não é um resultado que possa ser considerado bem sucedido.”
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