Algo há de singular na relação que a música de João Gilberto entretém com o tempo. Já se notou o efeito suspensivo causado por ela, como se aludisse a um tempo ideal, afetivo, que não pode ser mensurado. Um tempo indeterminado, como o das horas que passamos em casa, o de uma conversa entre amigos. Lorenzo Mammì escreveu que esse tempo ideal em torno do qual João constrói suas interpretações decorre em grande parte de um sutil descompasso entre o plano da voz e o plano da batida do violão. Em outras palavras, o músico cria um pequeno desacordo que, ao invés de soar estridente ou antimusical, passa a aludir a um acordo tão perfeito que nenhum acordo real poderia efetivamente alcançar tal perfeição.
O mesmo padrão pode ser aplicado à relação entre melodia e acompanhamento: a dissonância em João Gilberto não chega a ser uma negação da consonância, mas alude a um consonância tão idealmente completa, que nenhuma consonância real conseguiria estar à altura. Mammì viu nisso uma elaboração estética da carga utópica que caracterizou a vida brasileira no fim dos anos 1950, a “eternização” daquele momento feliz. Colocando-se continuamente numa zona de ambigüidade, ou mesmo de indefinição, o poder de sua música viria da capacidade sugestiva – daí as comparações com o Impressionismo de Debussy. A canção passa a se referir a algo que está fora, que de certo modo a ultrapassa, e que só pode ser apreendido de modo indireto. Ganha a textura e até a qualidade semi-transparente e hipnótica de um véu, como se deixasse apenas entrever um grande mistério (a natureza do tempo? O Brasil? Os dois?). Solicita nossa atenção para lançá-la em outro plano, gerando um estado mental de concentração e ausência – ou seja, de devaneio.
Ouvindo João Gilberto temos a impressão de que a canção (seja qual for) não se desprende totalmente do indeterminado, fixando-se numa forma (e ele não para de operar pequenas mudanças, saturando os detalhes), mas antes toma carona em seu próprio movimento. Num ensaio sobre a divindade grega Proteu, Antonio Cícero definiu o “princípio eidopéico”: o princípio do fluxo, do movimento, da transformação, da metamorfose, que é também o princípio produtivo de formas. Toda a arte de João Gilberto se baseia na capacidade de fazer com que canções aparentemente “determinadas” (que já existem) voltem a se aproximar de um estado originário de “indeterminação” e movimento. A impressão não é a de ouvir uma música re-interpretada, ou re-trabalhada, mas de presenciar o próprio nascimento da canção – o momento exato, e ainda assim indefinível, em que os contornos frágeis de uma forma parecem se delinear sobre o fundo amorfo do indeterminado. Ao mimetizar o próprio ato criativo sobre canções que já existem, ele nos recoloca diante do mistério da origem, da transição entre “não ser” e “ser”.
Nuno Ramos escreveu belissimamente sobre isso: “O canto de João Gilberto não é o canto do intérprete, mas o do Autor (Luiz Tatit chama João Gilberto de re-Autor). Ele não interpreta, compõe – está compondo de novo, agora à nossa frente, e em loop. Ao menos para quem usa o instrumento, a separação entre melodia a harmonia não é própria exatamente do ato de compor? Não é necessário, para compor, discrepá-las um tanto, adiando a convergência? É esse ato que sua interpretação visita, abrindo novamente a canção, tornando fluido o que parecei ter se fixado”. Trata-se de abrir o acesso “a esse núcleo onde o ato criador retorna”.
A questão é saber como uma melodia já tão fixada na memória por infindáveis repetições, tão cristalizada, pode ter sua força vital recobrada, sua qualidade movente desobstruída. Em outras palavras, como pode conciliar a realidade de sua forma (individualizada, definida), com a lembrança de seu passado líquido; como pode ser forma sem deixar de trazer consigo a marca da indeterminação – o reino absoluto de onde tudo veio, e para onde tudo retornará. A modernidade de João Gilberto se apóia sobre uma flexibilização do passado, muito mais do que sobre uma ruptura. Ele atua no nível quântico da canção, saturando os átomos em suas estruturas ínfimas, revelando micro-ritmos, micro-sambas, micro-inflexões da voz, matizes mínimos do afeto. Ao fazer isso, parece se distanciar do tempo da história, adentrando, de algum modo, o tempo natural.
A música de João faz pensar antes no lento modelar das chuvas e dos ventos sobre a matéria rochosa, do que nos frutos intempestivos das ações humanas. É quando o tempo da cultura pulsa em fase com o tempo da natureza. Seu método de trabalho, lento e monótono, as várias anedotas sobre ele tocando durante horas e horas um único acorde ao violão, experimentando em diversos ambientes o som que sai da garganta, apenas comprovam a vontade de acessar uma temporalidade abstrata, geológica talvez. Mudança e permanência coexistem nele num equilíbrio quase impossível.
Até as morenas cantadas por João Gilberto (a Rosa morena, a Morena boca de ouro) trazem algum tipo de emanação telúrica, parecendo a um só tempo sólidas e fluidas, efêmeras e eternas. Aliás, é possível que sua afinidade profunda com Dorival Caymmi venha daí: também as canções de Caymmi – polidas na memória por infinitas idas e vindas, com a calma de ondas que esculpem, através dos séculos, formas inesperadas sobre imensos rochedos – parecem ser frutos não da intenção de um autor, mas do trabalho anônimo do próprio tempo – “não parece coisa de gente”, diria Arnaldo Antunes. João é parente próximo de Caymmi. O registro grave de ambos nos dão a impressão de que a voz é emitida de dentro das grutas do tempo até nós. Há uma qualidade mineral, um misterioso elo com a terra. Ambos parecem reproduzir o lento entrelaçamento entre natureza e cultura que marca as culturas pré-modernas – a transição macia entre o tempo geológico e o tempo humano.