Joaquim começa muito bem, desanda a partir da metade do segundo terço e acaba mal – essa foi minha impressão quando assisti ao filme pela primeira vez, há alguns meses.
Decepcionado, deixei para comentar Joaquim depois de assistir de novo ao filme escrito e dirigido por Marcelo Gomes, o que acabou só ocorrendo no sábado passado.
A proposta de um filme sobre o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, concentrado no período anterior à Inconfidência Mineira, era muito atraente. Além disso, uma magnífica fotografia do Alferes Joaquim (Júlio Machado) a cavalo, atravessando um rio de olhos arregalados, e em especial dois dos filmes anteriores de Marcelo Gomes – Cinema, Aspirina e Urubus (2005), e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), esse último codirigido por Karim Aïnouz – haviam criado em mim uma expectativa favorável que não foi confirmada.
Ao rever o filme, a beleza do plano de abertura voltou a me impressionar, apesar da forma narrativa indicada nos primeiros minutos ser logo abandonada. Por um instante, o espectador pode imaginar que assistirá às memórias póstumas do Alferes Joaquim, o que seria fascinante, mas acaba não sendo a opção seguida.
Joaquim começa assim: Exterior – Dia. Cabeça fincada em um marco, diante da pequena igreja colonial. O decapitado tem cabelos longos. Chove muito e há velas acesas no interior da igreja. Plano fixo. Ouve-se voz em off : “Quem vos fala é um decapitado. Apenas eu perdi a cabeça, talvez por ser o mais pobre, talvez por ser o mais exaltado” (cito de memória apenas uma frase do texto inicial). É uma abertura digna da mais exigente antologia.
Quanto ao final de Joaquim, especificamente o último diálogo do Alferes Joaquim, reconsiderei minha opinião inicial após ter revisto o filme. Da primeira vez, a expressão “dar um pé na bunda”, usada no fim do século 18, me soara inadequada, servindo apenas para fixar o personagem como um homem grosseiro. Custei a encontrar a origem do termo, mas lá está no Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, publicado em 1759: “O senhor Barão […] expulsou Cândido do castelo a violentos pontapés no traseiro.” A versão chula da frase do autor iluminista é pois plenamente justificada na boca do Alferes. Quem sabe Cândido estava entre os livros que “trazem as ideias que nos vão trazer a liberdade”, como diz o Poeta em Joaquim, e levaram o Alferes a aderir à conspiração? Caso tenha tomado Cândido emprestado, ele pode ter fortalecido sua visão da injustiça da separação entre nobres e plebeus.
O estilo da filmagem, com a câmera quase sempre na mão, é outro acerto de Joaquim. A sensação que resulta da instabilidade da imagem é de estarmos próximos aos personagens, testemunhando a ação e ouvindo suas confidências de perto.
O que continuou insatisfatório, após a segunda visão de Joaquim, foi o filme em si mesmo, prejudicado que é por uns quantos equívocos. Um deles é o desequilíbrio entre o tempo dedicado às diferentes etapas da trajetória do personagem principal; outro é a mudança de postura do Alferes – ele deixa de ter apenas a ambição de ser promovido a tenente e encontrar ouro; passa a considerar os portugueses bandidos; não luta mais apenas contra piolhos, carrapatos, onças e piranhas; sonha dar um tiro e matar o novo governador da capitania, percurso de radicalização cuja narrativa resulta pouco convincente.
A personagem da escrava que todos chamam de Preta (a atriz portuguesa Isabél Zuaa), talvez a mais forte de Joaquim, depois de ter assassinado o administrador da fazenda e fugido para o mato, some do filme, chegando a dar impressão que não aparecerá mais. Em contraposição, a expedição do Alferes ao sertão proibido é longa demais, criando outra falsa expectativa – a de que a obsessão por encontrar ouro será a ruína do personagem.
A solução narrativa para o Alferes pode reencontrar a ex-escrava chamada Preta no quilombo onde ela se refugiou é um passe de mágica, tão inverossímil quanto ela libertar o Alferes depois de ter recusado com altivez continuar a ser chamada de Preta, dito com firmeza que agora se chama Zuaa e declarado que nunca mais nenhum branco iria encostar nela. Além disso, a brevidade e visão folclórica do quilombo, no qual não faltam disfarces e batuques, é especialmente prejudicial ao filme, ainda mais por que o Alferes atribui ao que viu no refúgio dos escravos a inspiração para uma “verdadeira revolta”.
Há um momento em Joaquim que marca a inflexão do personagem. O Alferes entra no rio, fica debaixo da cachoeira e grita. Para quem acompanha a recente produção pernambucana é inevitável esperar que a água vá se transformar em sangue, o que, para alívio geral, não acontece.
A cena da cachoeira faz lembrar personagens de filmes do Cinema Novo que espalmam a mão e gritam: “é preciso fazer alguma coisa”, expressão de sua impotência política. Pois não é que o Alferes depois do grito na cachoeira, diz algo parecido: “Eu preciso fazer alguma coisa com minha raiva.” Pelo visto, há elos insuspeitados ligando filmes da década de 1960 com os de hoje.
Um desses elos é a incapacidade crônica do cinema brasileiro para tratar da classe dominante a não ser em viés debochado. No caso de Joaquim, seguindo a tradição, “os fidalgos importantes que querem expulsar os portugueses dessa terra” são todos figuras caricatas. É pena.
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Havia 12 espectadores para assistir a Joaquim, sábado passado, na única sessão do dia, às 15h10min. Pode parecer pouco, mas representa ocupação de 36,36% da sala que tem apenas 33 lugares. Para um filme que se mantém em cartaz desde sua estreia, há dois meses, não é de todo mal. Quando o filme terminou e as luzes foram acesas, todos demoraram a se levantar. Pareciam estar sob impacto de Joaquim.