Anna Babinets é uma repórter investigativa que vive em Kiev, capital da Ucrânia. Trabalha como editora-chefe no Slidstvo.info, um site de jornalismo independente. Nos últimos anos, se dedicou a apurar casos de corrupção em instituições do governo ucraniano, como o Exército. Um trabalho jornalístico dentro da normalidade de um país democrático. Até que veio a guerra. O país entrou em paralisia, o governo ucraniano trancou as bases de dados que municiavam o trabalho dos jornalistas, e foi indispensável mudar de rumo.
“Eu não podia imaginar na minha vida que um dia teríamos que fazer o que temos que fazer hoje”, disse Babinets, convidada da mesa de encerramento do primeiro dia do Festival piauí de Jornalismo, realizado na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A jornalista ucraniana foi entrevistada pela repórter da piauí Thais Bilenky e pela colunista de O Globo Dorrit Harazim.
No dia 24 de fevereiro, quando as tropas russas cruzaram a fronteira da Ucrânia, Babinets estava dormindo em casa com a família. Ela tem uma filha de 7 anos. Acordada no meio daquele turbilhão, a família decidiu deixar o país, como fizeram milhões de ucranianos. “Foi muito assustador. Os russos em pouco tempo chegaram muito perto de Kiev. Não sabia o que poderia acontecer se entrassem na cidade”, ela contou. Os três se mudaram temporariamente para a Romênia, país fronteiriço. De lá, Babinets continuou chefiando os trabalhos do Slidstvo.info. Falava com seus repórteres na Ucrânia diariamente por meio de vídeochamadas. Depois de algumas semanas no exílio, resolveu que era hora de voltar.
“Como jornalista eu precisava estar no meu país. Era importante”, ela explicou. O jornalismo praticado por ela e sua equipe teve de mudar drasticamente. Toda a energia passou a ser dedicada a cobrir crimes de guerra. Foram inúmeras denúncias nesses nove meses de conflito: casos de tortura, de assassinatos e sequestros cometidos por militares russos. “Trabalhamos com provas, provas, provas”, respondeu Babinets ao ser questionada sobre o método de apuração desses casos. Um deles chama atenção: a equipe obteve acesso a um smartphone que havia sido roubado por dois soldados russos, e ao vasculhar o aparelho, conseguiu elucidar crimes de guerra que haviam sido cometidos por eles.
A jornalista resume assim uma operação padrão dos últimos tempos: “Nossos repórteres vão geralmente aos territórios já liberados, falam com as pessoas, encontram histórias sobre seus familiares, sobre casos de tortura, tentamos apurar quem foram os militares responsáveis, buscamos fotos em redes sociais. Depois os repórteres voltam ao local e mostram as fotos para as pessoas, para que os criminosos possam ser identificados.” Caso dê certo, a equipe vai atrás das autoridades militares em busca de respostas e punições — o que nem sempre é possível, já que, ao ir atrás dos soldados denunciados por crimes, muitas vezes a equipe descobre que eles já morreram em combate. “Muitos deles não podem ser punidos. Mas é nosso trabalho buscar provas. Se alguns soldados morreram, há também os chefes que mandaram que eles fizessem aquilo. Os chefes podem ser punidos.”
Apesar da guerra, Babinets e os demais moradores de Kiev conseguem viver hoje dentro da normalidade possível. A cidade segue fora do alcance dos russos. Todas as atividades básicas funcionam, apesar de eventuais cortes no fornecimento de energia. Sua filha frequenta a escola como antes da guerra. “Os mercados estão abertos, podemos ir ao cinema, aos restaurantes. O problema é o toque de recolher. Todos devem ir para casa às oito e meia da noite. Jornalista acorda tarde e dorme tarde, então ficou difícil”, ela brincou.
Babinets diz que, caso a situação em Kiev se torne perigosa, não hesitará em deixar o país novamente. “Vou ficar lá o quanto for possível, com meus parentes, meu time. Minha equipe precisa de apoio e inspiração não só pelo Zoom”, explicou a jornalista, que desde 2015 é editora regional do Projeto de Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção (OCCRP).
Em dado momento, Babinets respondeu sobre o que será do trabalho jornalístico na Ucrânia depois que a guerra acabar. Ninguém acredita que a normalidade será restaurada tão cedo. “Depois que a guerra acabar, teremos que trabalhar duro pra obter de volta nossa liberdade de expressão, a democracia”, ela prevê. “Acho que teremos que gastar muito do nosso tempo explicando às autoridades que elas são administradoras [da sociedade], e nosso papel é investigar. Não somos contra eles. Teremos trabalho duro para fazer.”