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    Ilustração: Carvall

anais da desigualdade

Judiciário de bolso cheio

Ganhos extras de juízes estaduais alcançaram pelo menos 1,4 bilhão de reais no ano passado

Camille Lichotti | 29 jan 2021_21h05
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Enquanto gera uma onda de desemprego recorde no país, a crise sanitária não provoca nem sequer uma marolinha no bolso de milhares de juízes brasileiros. Em 2020, quando a pandemia de Covid-19 eclodiu, magistrados de tribunais estaduais embolsaram, juntos, pelo menos 1,4 bilhão de reais em “penduricalhos” – ou melhor, em remunerações extras, que turbinaram o holerite costumeiro deles. Os dados estão publicados no portal do Conselho Nacional de Justiça  (CNJ). Entre outras benesses, os “superfuncionários” receberam auxílio-saúde e auxílio-alimentação, indenização por férias não tiradas, ajudas de custo ou gratificação pelo exercício cumulativo de atividades.

O rendimento anual líquido (já com impostos descontados) de um único juiz de Uberlândia (MG), por exemplo, ultrapassou 1 milhão de reais. O montante se revelou quase quatro vezes maior do que tudo que ele faturaria se contasse apenas com seu salário habitual, de aproximadamente 33 mil reais. Por causa dos “penduricalhos”, que somaram mais de 700 mil reais, o magistrado teve um ganho mensal superior ao teto constitucional do funcionalismo público, que hoje é de  39,3 mil reais. “É um problema sistêmico, não individual. Algumas categorias de servidores públicos utilizam sua autonomia orçamentária e gerencial para aumentar os benefícios corporativistas”, explica Rubens Glezer, doutor em teoria do direito e professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. 

A piauí identificou cerca de 10 mil juízes no Brasil que, em 2020, receberam pelo menos uma parcela mensal de seus rendimentos líquidos acima do limite constitucional. Destes, aproximadamente novecentos, ativos ou inativos, ganharam mais do que o teto em todos os meses mencionados no site do CNJ – 54% deles pertencem ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. São os próprios tribunais que fornecem os dados salariais para a plataforma do conselho. Em 2020, nenhum passou informações que abarcavam o ano inteiro. Todos deixaram um ou mais meses de fora.


O tribunal de Minas não divulgou os ganhos de janeiro, agosto e dezembro. Ainda assim, foi o que mais gastou em benefícios: cerca de 326 milhões de reais. A maior fatia desse total corresponde a indenizações por férias não tiradas. Para piorar, pelo menos dezesseis magistrados mineiros ganharam, em um único mês, mais de 100 mil reais de indenização por férias-prêmio – benesse a que todo servidor público tem direito após cinco anos de trabalho. Já os gastos com auxílio-saúde superaram 42 milhões de reais. O Tribunal de São Paulo também figura entre os que mais gastaram com benefícios. No ano passado, os juízes paulistas receberam aproximadamente 116 milhões de reais líquidos em férias não tiradas.

Os gastos com “penduricalhos” são recorrentes. Em 2019, as benesses pagas em todo o país totalizaram, no mínimo, 1,6 bilhão de reais. Naquele ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o de Minas também lideraram o ranking. Mais de 620 milhões de reais foram distribuídos entre os magistrados paulistas e pelo menos 185 milhões de reais aos mineiros. Convém notar que os valores disponibilizados pelo tribunal de Minas Gerais estão incompletos e correspondem a apenas cinco meses de 2019.


O valor gasto com benefícios em 2020 ainda pode ser maior, já que cinco tribunais não atualizaram no portal do CNJ o detalhamento dos contracheques, que deveriam ficar à disposição de qualquer cidadão. No tribunal do Rio de Janeiro, por exemplo, a última informação disponível é de julho de 2019. Outros tribunais forneceram dados inconsistentes, em que os valores detalhados não batem com os apresentados no contracheque dos juízes. O levantamento feito pela piauí levou em conta apenas os treze tribunais estaduais que publicaram informações sólidas.


A indenização mais cara concedida aos magistrados brasileiros em 2020 se refere a férias não tiradas. Esse “penduricalho” custou pelo menos 423 milhões de reais aos cofres públicos. Os juízes têm direito a sessenta dias de férias por ano, privilégio de que pouquíssimos servidores públicos desfrutam. “Mesmo que estejamos num contexto de flagrante crise fiscal, os interesses da classe preponderam”, afirma Glezer.

A conversão de férias em dinheiro é legal. No entanto, em dezembro do ano passado, a Corregedoria Nacional de Justiça propôs ao plenário do CNJ restrições quanto ao pagamento dessa remuneração. A proposta ainda não foi julgada.  

Outra fatia importante dos “penduricalhos” pagos em 2020 corresponde ao abono-permanência. Esse benefício é conferido aos servidores que já cumpriram as exigências para a aposentadoria voluntária, mas escolheram permanecer em atividade até a aposentadoria compulsória. Na prática, a benesse funciona como um reembolso da contribuição previdenciária. Os juízes que se encaixam nesse perfil receberam, juntos, mais de 134 milhões de no ano passado. Além disso, pelo menos 183 milhões foram gastos em auxílio-saúde e auxílio-alimentação. “Muitos dos benefícios são isentos de Imposto de Renda ou qualquer outra tributação”, ressalta Glezer. “Ou seja: nenhuma parte dessas remunerações volta para a sociedade.”

A lei que estabelece um teto para o ganho mensal dos funcionários públicos é de 2000. Mas como se vê, os magistrados acabam encontrando brechas e aumentam seus salários. A estratégia já foi questionada judicialmente. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal esboçou um acerto de contas em relação às regalias do Judiciário. Na época, os ministros consideraram inconstitucional que as gratificações ultrapassassem o teto. Em contrapartida, determinaram que tal limite não se aplicaria a verbas indenizatórias, responsáveis pela maior parte dos benefícios. “O Supremo teve todo um discurso sobre ‘penduricalhos’, mas deixou intacto o sistema robusto que os possibilita”, diz Glezer. No caso dos tribunais estaduais, a atual estrutura remuneratória se submete às regras aprovadas pelas assembleias legislativas. Glezer acredita que a relação próxima entre magistrados e políticos de várias esferas pode ser usada para garantir benefícios. 

Em 2016, uma corte especial do Tribunal de Justiça de Goiás recomendou o pagamento de uma indenização milionária, com juros e correção monetária, aos servidores do Judiciário estadual. O ressarcimento decorria de uma conversão incorreta do cruzeiro real para a Unidade Real de Valor (URV), ocorrida em 1994 e que afetou os salários do funcionalismo. Em 2017, o então vice-governador de Goiás, José Eliton Júnior, autorizou o pagamento. Na ocasião, o presidente do tribunal goiano, Gilberto Marques Filho, um dos responsáveis pelo processo, celebrou a decisão. Ele disse que, entre os salários pagos pelos tribunais estaduais do país, os do Judiciário de Goiás eram um dos menores – em média, 27 mil reais, sem contar os benefícios. Assim, os juízes do tribunal goiano receberam mais de 84 milhões de reais somente em 2020, relativos à conversão monetária de quase três décadas atrás. “Diferentemente de outros profissionais, os magistrados são capazes de advogar por seus interesses de forma articulada e potente ”, avalia Glezer.
 

Procurado pela piauí, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais informou, em nota, que observa o teto remuneratório constitucional e que eventuais verbas pagas além do salário, “todas amparadas pela Lei Complementar 59/2001, não estão abrangidas pelo mencionado teto”. Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Goiás disse que o pagamento das diferenças relacionadas à conversão de cruzeiros reais para URV “é uma reparação que foi recebida integralmente por outras categorias no início dos anos 2000 e, no caso de Goiás, apenas a partir de 2017, dividida em cem parcelas”.

Também em nota, o Conselho Nacional de Justiça comunicou que “acompanha as informações que circulam na sociedade, inclusive denúncias realizadas pela imprensa, e, quando verificada falta cometida por algum órgão da Justiça, adota medidas cabíveis, em processo próprio”. Os demais tribunais citados nesta reportagem foram procurados, mas não responderam. 

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