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Júlio Cortázar e a música: a volta ao dia em diversos mundos

Eliete Negreiros | 19 out 2012_15h16
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Júlio Cortázar queria escrever do jeito que um músico de jazz improvisa: “a invenção constante, o trajeto labiríntico, os impasses, os riscos de autodestruição, o silêncio, as narrativas por fim resgatadas do naufrágio”, diz David Arrigucci Jr. Era assim que fazia Lester Young quando improvisava em Three LittleWords, uma invenção que segue sendo fiel ao tema que combate e transforma: “Lester escolhia o perfil, quase a ausência do tema, evocando-o quem sabe como a antimatéria evoca a matéria.”, diz Cortázar.

Lester Young – Three little words

Em A volta ao dia em oitenta mundos, Cortázar diz que não havia um só Carlos Gardel (1890-1935), mas dois: o de sua preferência é o dos anos vinte, o primeiro, com “sua voz sozinha, alta e cheia de trinados, com as guitarras metálicas crepitando ao fundo” (e não acompanhada por orquestra), o Gardel de Mi noche triste (1917), canção fundadora do gênero tango, que depois se tornaria sinônimo da música argentina. O Gardel que Cortázar ama é aquele que “é preciso escutar no gramofone, com toda a distorção e perda imagináveis”, pois “é mais atrás, nos pátios à hora do mate, nas noites de verão, nos rádios de galena ou com as primeiras lâmpadas, que ele está em sua verdade, cantando os tangos que o resumem e o fixam na memória”. É um Gardel cujo canto expressava uma pureza e autenticidade que, depois, parece que se perdeu, com a acentuação melodramática da voz e das composições.

Mi noche triste – Samuel Castriota, Pascual Contursi

Falando de Mano a mano, Cortázar revela a essência deste primeiro Gardel: “Escuto uma vez mais Mano a mano, que prefiro a qualquer outro tango e a todas as gravações de Gardel. A letra, implacável no seu balanço da vida de uma mulher que é uma mulher da vida, contém em poucas estrofes ‘a soma dos atos’ e o vaticínio infalível da decadência final. Inclinado sobre esse destino, que por um momento compartilhou, o canto não expressa cólera nem despeito. Rechiflao (Alucinado) em sua tristeza, evoca-a e vê que foi na sua pobre vida pária somente uma boa mulher. Até o final, apesar das aparências, defenderá a honradez essencial de sua antiga companheira. E desejará o melhor, insistindo na qualificação: Que el bacán que te acamala tenga pesos duraderos, que te abrás en las paradas com cafishos milongueros, y que digan los muchachos: Es uma buena mujer”.

Mano a mano – Carlos Gardel, J. Razzano, Celedônio Flores

“Talvez prefira este tango”, continua Cortázar, “porque dá a justa medida do que representa Carlos Gardel. Se suas canções tocaram todos os registros do sentimentalismo popular, desde o rancor irremissível até a alegria do canto pelo canto, desde a celebração das glórias turísticas até a glosa da ocorrência policial, o justo meio em que se inscreve para sempre a sua arte é o deste tango quase contemplativo, de uma serenidade que se diria termos perdido para sempre”. Continuando a dar a volta ao dia nos diversos mundos que Cortázar nos apresenta, caleidoscópio sonoro, vamos entrar agora no mundo de Louis Armstrong, “enormíssimo cronópio”: “Parece que o passarinho mandão, mais conhecido por Deus, soprou no flanco do primeiro homem para animá-lo e dar-lhe espírito. Se em vez do passarinho tivesse estado lá Louis para soprar, o homem teria saído muito melhor.” Cortázar escreveu este ensaio depois de assistir a uma apresentação de Louis num teatro em Paris: “Agora veja o senhor como são as coisas neste teatro. Neste teatro, onde uma vez o grandíssimo cronópio Nijinsky descobriu que no ar há balanços secretos e escadas que levam à alegria, dentro de um minuto vai surgir Louis e vai começar o fim do mundo”. “Para isto já desencadeou o apocalipse, porque basta Louis levantar sua espada de ouro e a primeira frase de When it’s sleepy time down south cai sobre a gente como uma carícia de leopardo…”

When It’s Sleepy Time Down South

“e no meio está Louis com os olhos em branco atrás do pistão, com o lenço flutuando numa contínua despedida de algo que não se sabe o que seja, como se Louis necessitasse dizer todo o tempo adeus a essa música que ele cria e que se desfaz no instante, como se soubesse o preço terrível dessa maravilhosa liberdade que é a sua.”

When your lover has gone

“Uma coisa digna de se levar em conta é que além da imensa montanha de aplausos que caem sobre Louis apenas terminado o coro, o próprio Louis se apressa a mostrar-se visivelmente encantado consigo mesmo, ri com a grandíssima dentadura, agita o lenço e vai e vem pelo palco, trocando frases de contentamento com os músicos, todo satisfeito com o que está ocorrendo.” “Perdido na imensa abóboda do seu canto, fecho os olhos, e com a voz deste Louis de hoje me vêm todas as suas outras vozes de dentro do tempo, sua voz de velhos discos perdidos para sempre, sua voz cantando When your lover has gone, cantando Confessin’.

Confessin’

“O concerto acabou, já Louis estará trocando de camisa e pensando no hamburger que lhe vão preparar no hotel e na ducha que vai tomar, mas a sala continua cheia de cronópios que procuram lentamente e sem vontade a saída, cada um com seu sonho que continua, e no centro do sonho de cada um Louis pequenininho soprando e cantando.” Em seu livro de contos As armas secretas há um conto antológico, O perseguidor, dedicado a Charlie Parker. Sobre este livro, Davi Arrigucci Jr. escreveu: “Duas obras-primas, As babas do diabo e O perseguidor, reúnem as características fundamentais da poética cortazariana, sua visão da arte como busca e rebelião. Seu reconhecimento do limite em que vive o poeta em sua radicalidade, quando faz juz ao nome e encarna a sede unitiva de um perseguidor do impossível, desgarrado no espaço degradado e fragmentário do mundo moderno”.

Julio Cortazar – El perseguidor

Agora ingressaremos no mundo misterioso de Thelonious Monk. Cortázar descreve sua mágica aparição, num concerto em Genebra “Agora se apagam as luzes (…) e, do fundo, dando uma volta inteiramente desnecessária, um urso com um barrete entre turco e solidéu, encaminha-se para o piano. (…) Quando Thelonious se senta ao piano toda a sala senta-se com ele. (…) Passou apenas um minuto e já estamos na noite fora do tempo, a noite primitiva e delicada de Thelonious Monk.

Blue Monk

My melancholy baby

E depois, o imenso vazio criado quando ele deixa de tocar por alguns instantes o piano: “sentimos o vazio de Thelonious afastado da beira do piano, a interminável diástole de um único imenso coração onde correm todos nossos sangues, e exatamente então sua outra mão toma o piano, o urso se balança amavelmente e regressa de nuvem em nuvem até o teclado, olha-o como pela primeira vez, passeia pelo ar os dedos indecisos, deixa-os cair e estamos salvos, há Thelonious capitão, há rumo por um momento.” Thelonious, como um demiurgo, tem o poder de criar um mundo maravilhoso, nos transportar do caos ao cosmos, criar algum sentido

Meia-noite: é ao redor desta hora misteriosa, ponto de mutação, passagem de um dia a outro, que termina esta viagem cortazariana. Nesta jornada passeamos pelos paraísos musicais descortinados por Cortázar, mundos que se inserem numa outra linha do espaço-tempo, éden da delicadeza e da beleza que quero crer não totalmente perdidas. Paraísos possíveis, reinventados a cada audição? Paraísos não totalmente perdidos? Pode ser sim? Por que não?

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