A balconista Silmara Maria, 24, soube da morte do sobrinho Jefferson Brito Teixeira, 14, pelo telefone. No fim da tarde daquele 18 de agosto, quando ainda estava no trabalho, recebeu via WhatsApp uma mensagem do marido avisando do assassinato. Sua sogra, avó de Jefferson, também recebeu uma mensagem de um colega do adolescente: “Eu vim aqui trazer uma notícia não muito boa para a senhora. A notícia que eu recebi é que acabaram de matar seu filho lá em frente ao Chiquinho. (…) Tem como a senhora ir lá ver, por favor? Todos da capoeira estão chocados.” Com as aulas suspensas durante a pandemia, Jefferson ocupava a maior parte do tempo ajudando a avó, que o criou como filho, nas tarefas de casa. Nas segundas e quartas-feiras, frequentava uma roda de capoeira, que ficava no fim da rua de casa. Nas sextas e domingos, servia como coroinha na Paróquia São Pedro, na Barra do Ceará, periferia de Fortaleza. Descrito pela tia como “uma criança que ainda não tinha mentalidade de adolescente”, sonhava em ser MC, viajar para São Paulo e ficar famoso.
Jefferson não chegou à maioridade e tampouco conseguiu realizar os sonhos. Ao fim de mais uma aula de capoeira, pegou a bicicleta, percorreu alguns quarteirões e foi parado por um jovem de uma facção quando voltava para casa. A abordagem aconteceu no cruzamento entre a Travessa Pedro e Rua São Pedro, que divide a região da Barra do Ceará, periferia de Fortaleza, em duas facções: Comando Vermelho (CV) e Guardiões do Estado (GDE).
Confundido com um inimigo por apresentar três listras na sobrancelha, marcas que remetem à facção criminosa GDE, Jefferson foi levado por um integrante do CV para um local mais reservado para ser torturado. Pelo menos outros cinco jovens participaram das agressões, que incluíram socos, pontapés, pauladas e pedradas. Jefferson foi morto com três tiros na cabeça. Entrou para a estatística de 222 garotos de 10 a 19 anos que, no ano passado, foram alvo em Fortaleza dos chamados CVLIs (Crimes Violentos Letais Intencionais), categoria na qual são contabilizados homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. A média é de um garoto morto a cada dois dias. Entre garotas de 10 a 19 anos, uma foi morta a cada dezessete dias na capital cearense. Os dados constam na Nota Técnica “Cada Vida Importa”, publicada em 22 de fevereiro pelo Comitê de Prevenção e Combate à Violência, ligado à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e que há cinco anos atua em parceria com o governo do Estado, Unicef e sociedade civil. “O estado foi exemplar na gestão da saúde durante a pandemia, na tentativa de minimizar os efeitos da superlotação de unidades de saúde e UTIs. (…) Entretanto, se viu novamente no agravamento de outra epidemia, a de homicídios, que há uma década se mantém alta, mesmo que haja queda em alguns anos da série histórica até 2020”, diz o texto.
Em 2020, o Ceará assistiu ao crescimento dos homicídios de forma geral, que subiram 81%. Um dos motivos apontados por especialistas e pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) para o aumento foi a greve dos policiais militares em fevereiro de 2020, quando houve mais de 321 assassinatos em treze dias. Os dados da SSPDS mostram que, de 18 de fevereiro a 1º de março, enquanto durou o motim dos policiais, os CVLIs aumentaram 435% em relação ao mesmo período de 2019. “Com o motim, a população ficou desprotegida. Foi uma greve tartaruga que fez a população parar de circular por dias. Ruas vazias que ficaram propícias a delitos e homicídios”, conta Cesar Barreira, coordenador sênior do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV-UFC).
O aumento da violência em geral impactou diretamente os homicídios de jovens, que tinham caído em 2018 e 2019. Em 2020, subiram 90,70% em comparação com o ano anterior. Em média, 12,58 garotos e garotas foram assassinados por semana no Ceará. Segundo os dados do comitê, a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes na população em geral subiu de 24,71 em 2019 para 43,96 em 2020, um aumento de 77,9%. Entre adolescentes de 10 a 19 anos, a taxa subiu de 22,04 em 2019 para 42,42 em 2020, um incremento de 92%. Dos 4.039 CVLIs registrados no Ceará no ano passado, 677, ou 16,76%, tiveram adolescentes de 10 a 19 anos como vítimas.
O massacre da juventude não é exclusividade do Ceará. Em todo o país, jovens de até 29 anos representaram metade das vítimas de violência letal em 2019, mostram dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No Ceará, o problema se associa à ação das facções criminosas e à disputa delas por territórios. Barreira, da UFC, destaca a crueldade dos crimes e o fato de as vítimas serem justamente a parcela mais vulnerável da população. “São mortes violentas, como forma de punição ou por luta por território entre integrantes de facções. Nessa faixa etária, encontram-se os mais vulneráveis. Sejam meninos que circulam cada vez mais cedo com armas de fogo, ou meninas mortas por feminicídios e crimes passionais”, explica.
Daniele Negreiros, assessora técnica e coordenadora de pesquisa do comitê, diz que a ação das facções se reflete inclusive nos CVLIs que têm garotas como vítimas. Em comparação a 2019, as mortes de garotas de 10 a 19 anos cresceram 69,77% no estado. O aumento tem sido constante: em 2014, eram 6,77 mortes por 100 mil habitantes. A taxa subiu para 9,93 por 100 mil em 2017 e 14,29 no ano seguinte. Dos 73 casos, 52 ocorreram fora da capital.
Andressa Oliveira Pereira, 17, entrou para as estatísticas em fevereiro do ano passado, quando saiu para uma festa de pré-carnaval e não voltou mais. O corpo foi encontrado em Horizonte, na Grande Fortaleza, sem os olhos e com marcas de tiros. Com o final das apurações, Gilderlânio da Silva de Freitas, 18, foi preso e indiciado por homicídio doloso. O crime, segundo a Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), estaria relacionado à disputa entre facções criminosas. A polícia também investiga a ação das facções na morte, em maio de 2020, de Klaryce Jacinto Vasconcelos, 12, assassinada a tiros no município de Jijoca de Jericoacoara, um dos principais pontos turísticos do estado. Conforme investigação da Delegacia Municipal de Cruz, seis suspeitos foram presos e indiciados pelos crimes de homicídio qualificado por motivo torpe e fútil, além de integrar organização criminosa e roubo.
Para Negreiros, o surgimento do coletivo criminoso local Guardiões do Estado (GDE) marca uma nova dinâmica de homicídios e feminicídios no Ceará. As meninas, como ponto mais fraco dessa cadeia, acabam entrando no jogo das facções. Nem sempre são “batizadas” para integrar oficialmente as facções, mas se relacionam com garotos que fazem parte dos grupos criminosos. “Elas são atravessadas por essa dinâmica, muitas vezes, de maneira secundária. Se negarem a fazer algo ou a dar uma informação, ou não levar determinada coisa para algum território, ou, simplesmente, por circularem em territórios rivais, são motivos que podem levar à morte”, afirma Negreiros.
O relatório Meninas no Ceará – A Trajetória de Vida e de Vulnerabilidades de Adolescentes Vítimas de Homicídio, publicado em setembro do ano passado, já havia alertado para a violência de gênero associada às facções. “Taís, além de baleada, foi agredida fisicamente dentro de casa, ao tentar fugir de uma ameaça de abuso, pelos agressores. A mãe, que apresentava confusão mental e tinha poucos elementos do ocorrido, não procurou a polícia por medo de represália, uma vez que continua morando no mesmo endereço. Hoje, com alguns cadeados a mais, vive junto às fotografias da filha.” “Maria tinha vinculação com um grupo armado. Foi batizada e se relacionava com um rapaz também vinculado. A mãe comenta que essa é uma estratégia das facções. Elas recrutam adolescentes do sexo feminino, batizam, e as que ‘desobedecem’ são colocadas como olheiras nos territórios inimigos, pois ficam mais expostas e podem ser mais facilmente assassinadas.” “A avó de Suélen acredita que a morte da adolescente ocorreu pelo seu envolvimento com um rapaz que conheceu nas redes sociais. Ele estava preso e Suélen chegou a visitá-lo três vezes, mas preferiu romper o relacionamento. Após o rompimento, ele começou a ameaçá-la. Suélen foi assassinada na presença do filho, ao descer do ônibus, com mais duas amigas. A criança, de três anos, estava no colo de uma delas e precisa de atendimento psicológico.” Os nomes são fictícios, pois as famílias ainda sofrem ameaças.
Os casos do relatório ilustram tantos outros que acontecem no Ceará. As mortes, na maioria das vezes, vêm acompanhadas de tortura, e a crueldade dos crimes revela uma espécie de aviso às demais: se desobedecerem e tentarem sair da zona de influência das facções, o mesmo pode acontecer com elas. É uma dinâmica baseada no machismo e na negação de direitos. Na avaliação de Negreiros, a precariedade da estrutura social de alguns municípios cearenses, aliada à falta de estratégias de prevenção, influencia no aumento de mortes de meninas a cada ano, tanto no interior quanto na Grande Fortaleza. “São territórios que têm pouco a oferecer, com poucas oportunidades. Tem toda uma cadeia montada, um projeto político de morte. Inexiste estratégia de prevenção, por mais que vários sinais de alerta sejam acionados durante essa curta trajetória de vida dessas adolescentes. São mortes precedidas por ameaças e por rompimentos institucionais”, descreve. A negligência, por vezes, é estendida após a morte. Segundo a pesquisadora, quando uma menina é assassinada antes de chegar à maioridade, o processo de enlutamento, de comoção social, de empatia, não se estende aos órgãos de justiça. “Existe uma série de julgamentos morais, como se a morte fosse culpa dela, como se ela tivesse feito por onde”, revela.
Para o presidente do Comitê, deputado estadual Renato Roseno (Psol), o diagnóstico atesta um morticínio absurdo, que escancara a segregação social-racial-espacial. “Fizemos um grande diagnóstico da dinâmica dos homicídios e apontamos os porquês de tantas mortes. Desenvolvemos uma agenda com recomendações de prevenção. O efeito de longo prazo virá com a aplicação dessas recomendações. Para isso, precisamos ainda de muita mobilização social”, afirmou.
O relatório também trata do aumento das mortes por intervenções policiais. O caso de maior repercussão é o de Mizael Fernandes da Silva, 13, morto dentro da casa da tia Lizângela Rodrigues, em julho de 2020, no município de Chorozinho, no interior do Ceará. Os policiais invadiram e dispararam à queima-roupa contra o adolescente. Em seguida, os agentes limparam o quarto e levaram o corpo do garoto para o único hospital da cidade. Os PMs alegaram que o adolescente estava armado, a família nega. Segundo o laudo cadavérico, não havia impressões digitais do adolescente na arma de fogo apresentada pelos acusados.
Em 24 de agosto, a Polícia Militar do Ceará concluiu em Inquérito Policial Militar, amparada pelo excludente de ilicitude, que os PMs agiram em legítima defesa. Em outubro, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) discordou, apontando indícios de crime doloso, com intenção de matar. Em novembro, a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) indiciou um dos policiais. O Ministério Público afirmou à piauí que o caso de Mizael ainda está na fase de investigação policial e que por isso nenhuma peça do inquérito pode ser divulgada.
Em nota, a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), por meio da Delegacia de Assuntos Internos (DAI), afirmou que foi realizada uma reconstituição do crime e que aguarda laudo desse procedimento para finalizar o inquérito. “A Controladoria determinou a instauração de procedimento disciplinar para devida apuração do fato na seara administrativa.” Após seis meses de investigação acerca do assassinato, o “Caso Mizael” ainda não teve um desfecho. Apenas em 2020 foram registradas 143 mortes por intervenção policial no Ceará, uma média de 12 assassinatos a cada mês.
Barreira alerta também para a ausência de dados quanto à identificação racial das vítimas de homicídios no Ceará. “Não são só números, são vidas. E as vidas dessas vítimas têm cor. Jovens negros de periferia são as vítimas preferenciais. A possibilidade de a população negra ser morta é bem maior que as demais”, declara. No fim do ano passado, a Rede de Observatório de Segurança Pública mostrou, em um documento intitulado A Cor da Violência Policial: A Bala Não Erra o Alvo, que o Ceará não notifica a cor dos mortos de CVLIs em 77,2% dos casos. Embora 66,9% da população cearense sejam autodeclaradas negras, segundo o último Censo do IBGE, apenas 3% dos mortos por intervenções policiais são brancos. Segundo Lipe da Silva, coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) em Fortaleza, a falta de notificação reflete o racismo institucional que perpassa as políticas de segurança pública no Brasil. “Quando tivemos o motim, vivemos um extermínio aqui. A maioria dessas vítimas foram jovens negros da periferia. Quando vamos ver esses dados na prática, eles não estão lá. São apagados, são invisibilizados”, afirmou.
Procurada pela piauí, a Secretaria da Segurança afirmou que o governo tem trabalhado de forma incessante em projetos sociais voltados para a prevenção de violência como forma de reduzir os homicídios de adolescentes. De acordo com o major Messias Mendes, da Assessoria de Polícia Comunitária (APCom), o governo busca atuar de modo preventivo com projetos em comunidades com altos índices de violência. “As ações, que incluem aulas de música, esportes, karatê, judô, ocorrem em espaços públicos. Os projetos contam com o envolvimento de outros atores da sociedade, parcerias com as associações de moradores, coletivos da juventude e órgãos públicos. O trabalho inclui o mapeamento de indicadores de criminalidade, renda, saneamento e educação.
Outro eixo de atuação, segundo a pasta, é o investimento em tecnologia, inteligência e policiamento ostensivo para coibir a ação das facções criminosas, direcionar a atuação policial e solucionar os crimes violentos. De acordo com a secretaria, o número de delegacias 24 horas no Ceará mais que dobrou, passando de 13 para 32 unidades plantonistas. Ao mesmo tempo, a secretaria afirma que tem buscado refinar seus indicadores criminais, pois os dados são utilizados para orientar o trabalho das forças de segurança. Sobre as mortes em operações policiais, a secretaria afirmou que todas as ocorrências são apuradas pela Polícia Civil e submetidas à apreciação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Sobre a informação do critério de raça, a SSPDS ressaltou que a estatística é feita a partir de informações repassadas por parentes para casos de crimes contra a vida. “Em outros casos, o campo não é preenchido em razão da subjetividade da informação, o que gera inconsistência nos dados, impossibilitando a geração de uma estatística fiel ao cenário”, disse a secretaria.