Assim que o porteiro de um edifício em frente à Assembleia Legislativa, no Centro do Rio, descobre que haverá um novo protesto em sua rua, imediatamente separa uma máscara respiradora verde-oliva e a deixa por perto. Quer o equipamento à mão caso precise usá-lo em dias de manifestações – como a da tarde desta terça-feira, 24 de outubro, quando mais uma vez um ato contra o governo Temer foi reprimido com violência na capital carioca pela Polícia Militar. Ele ainda aproveita e reserva uma segunda máscara para o funcionário de serviços gerais, seu colega de portaria.
“Desde que começaram a fazer protesto toda hora aqui em frente, o condomínio resolveu comprar máscaras antigás para a gente trabalhar. Senão ninguém aguenta respirar, o gás entra direto aqui no saguão do prédio e demora a sair, arde os olhos, sufoca”, contou Alberto Monteiro da Silva, um sujeito bonachão de 59 anos, o bigodinho grisalho bem-aparado contrastando com a pele negra.
Enquanto mostrava a máscara, um modelo que cobre o nariz, a boca e o queixo com dois respiradores laterais, Silva acalmava quem entrava ou saía do prédio comercial, repleto de escritórios luxuosos de advocacia. “Por enquanto está tranquilo, ainda não começou a confusão”, disse ele a um dos visitantes que perguntava como estava o clima da rua.
A concentração para as manifestaçõess se dá geralmente a partir das 17 horas na Igreja de Nossa Senhora da Candelária, com destino à Cinelândia, percurso tradicional dos protestos cariocas desde a Passeata dos Cem Mil, em 1968. Se nas Jornadas de 2013 os manifestantes ainda levavam vinagre na mochila para diminuir os efeitos do gás de pimenta lançado pelos policiais, molhando bandanas e amarrando-as ao rosto, em 2017 o mais comum é que carreguem sua própria máscara, tal qual o porteiro Silva.
Foi o que aconteceu em um dos protestos recentes, em junho, contra a aprovação da reforma da Previdência. Tão logo a polícia passou a acompanhar a passeata, formando fileiras paralelas ao percurso, os manifestantes vestiram seus respiradores, que os fazem parecer atônitos mergulhadores em terra – ou alienígenas recém-caídos na avenida Rio Branco. Aos gritos de “Nenhum direito a menos!” e “Fora, Temer!”, eles desfilavam os mais variados modelos, cores e tamanhos, comprados pela internet ou em lojas de equipamentos de segurança, alguns até improvisados com garrafas PET.
O modelo mais comum entre participantes habituais das manifestações é um de plástico preto, que se acopla ao nariz e à boca como um nebulizador, e se fixa na cabeça com duas tiras de elástico. Custa, em média, 22 reais. É chamado de Respirador ¼ por cobrir apenas uma fração do rosto. Encaixado no nariz fica o respirador telado, em formato de biscoito Maria, com os filtros que bloqueiam os vapores orgânicos e gases ácidos do exterior, deixando passar apenas o oxigênio. Após o uso, no entanto, é preciso trocá-los, e o refil pode ser encontrado por cerca de 14 reais no comércio popular.
Por causa do preço acessível, é o mais usado por estudantes e vendedores ambulantes, que aproveitam as ruas cheias para oferecer suas mercadorias, sem deixar de se proteger. “Quando começaram os protestos de novo este ano, tivemos de repor todo o estoque, acabaram todas as máscaras”, comentou a vendedora Amália Alves dos Santos, da loja Central dos Plásticos, no Centro, enquanto tentava experimentar uma na própria cabeça para mostrar a eficácia do artefato, mas sem muita prática.
Outro modelo muito usado em manifestações é o chamado Semifacial, que cobre o nariz, a boca e o queixo – exatamente o mesmo de Silva e seu ajudante de portaria. Com dois respiradores acoplados, garante maior tempo de uso dos filtros, que duram até quatro vezes mais do que os modelos simples. Firmes, se ajustam bem ao rosto e impedem que o gás entre pelas vias respiratórias. Custa 44 reais na Casa de Ferragens Buenos Aires, também no Centro do Rio. Por mais uma bagatela de R$5,90 o freguês ainda leva óculos de acrílico para proteger os olhos.
“Você quer para quê? Para usar em protesto, é? Não se mete com isso não, moça, não adianta nada”, alertou o vendedor mais velho da loja, que preferiu não dizer o nome, tentando me demover da ideia de comprar uma, apesar do risco de perder a comissão. “Outra coisa: essa máscara é para quem vai pintar parede. Se o gás de pimenta for lançado pertinho de você, não vai adiantar nada”, insistiu.
A observação era pertinente: as duas máscaras mais usadas nas ruas originalmente servem como equipamento de proteção para quem faz pintura industrial e para quem usa fertilizantes e pesticidas na agricultura. Fabricadas há dezoito anos pela empresa Alltec Brasil e há quinze pela Plastcor do Brasil, duas das maiores do ramo no país, não garantem a filtragem dos componentes químicos presentes no gás de pimenta.
“Ela tem sido usada com uma função diversa da original, mas como tem cinco filtros químicos e dois mecânicos, já ajuda bastante quem tem que correr no meio da névoa”, detalhou o diretor de marketing da Alltec Brasil, Clay Costa, por telefone, da sede da empresa, em São Paulo. “Como a crise inibiu a indústria e a agricultura, a venda das máscaras acabou caindo, mas, com as manifestações, digamos que as vendas foram estabilizadas. A gente já viu nossas máscaras em novelas, em capa de jornal, é um momento bem atípico. E acaba funcionando como mídia espontânea”, observa ele, que distribui cerca de 25 mil máscaras ao ano para todo o Brasil.
Diretor da Plastcor do Brasil, com sede em Limeira, interior de São Paulo, João Neto se empolga com o uso que classifica como “sazonal” do produto: “Se o pessoal quiser, a gente faz até um modelo com um ‘Fora, Temer!’ escrito na máscara para vender mais.” De acordo com o boletim de vendas da empresa, 15 mil unidades dos respiradores foram comercializados no último ano.
Não é a primeira vez que esses modelos mais simples de máscaras respiratórias adquirem outros usos: com a moda das escovas progressivas, método popular de alisamento de cabelos, as proteções passaram a ser muito procuradas por cabeleireiros, que aplicam produtos à base de formol no cabelo das clientes. Ativado pelo calor do secador usado no processo, o formol se transforma em gás cujo efeito, quando inalado, se assemelha ao do gás lacrimogêneo, razão pela qual a máscara se torna necessária também nos salões de beleza.
Nos desfiles de máscaras que se veem nos protestos país afora, há também modelos sofisticados que cobrem a cabeça toda, como um capuz, ou adaptadas em capacetes. Esses têm ainda um par de óculos acoplados, com vedação similar aos óculos de mergulho, e respirador duplo, às vezes triplo. São encontradas na internet, em lojas de armamentos, e custam até 399 reais. Quem costuma usá-las são os repórteres fotográficos, que na dinâmica das manifestações são os que mais se aproximam dos confrontos, quando acontecem, para registrar as imagens.
“Tenho dois modelos, um que comprei em São Cristóvão, em 2013, e um menor que comprei pela internet. Acho péssimo trabalhar com máscaras, mas não tem jeito. Elas limitam e atrapalham bastante a visão e o foco, principalmente à noite. Tem uns fotógrafos que usam modelos estrangeiros, acho melhores, mas todo mundo reclama”, comentou a fotógrafa Ana Carolina Fernandes, profissional muito presente nas manifestações, e que publica em veículos como Folha de S.Paulo e Reuters.
Ainda assim, Ana lembra que nem sempre portar uma máscara traz garantias: “Outro dia, na Cinelândia, estava com outros fotógrafos e tirei um pouco a máscara porque as bombas de gás tinham parado um pouco e porque com as máscaras e capacetes nem nos reconhecemos uns aos outros. Foi quando vi um senhor no chão. Cheguei perto para fotografar e levei de um policial um jato de spray no rosto. Tive que sentar no chão e esperar passar. Nas situações reais, muitas vezes as máscaras são úteis.”
Mas nenhum modelo tem a qualidade dos que são usados pela própria polícia, o mesmo da Swat americana, com design inspirado na máscara do personagem Darth Vader, vilão de Guerra nas Estrelas. As máscaras foram exibidas à imprensa quando a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), órgão ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, comprou um lote de 3,7 mil unidades para ser usada durante a Copa do Mundo em 2014. A polícia carioca utiliza até hoje: de fabricação americana, resistente até aos gases mostarda e sarin, amplificador de voz, tubo para hidratação do policial e pode ser adaptada a uma reserva de oxigênio portátil. À época, custou pouco mais de 2 500 reais a unidade.