registra o combate entre seu diretor e sua personagem-título em belíssimas imagens e trilha musical, de Pedro Sotero e Patrick Laplin, respectivamente. A periferia das luzes da Broadway é a arena do confronto. De um lado, o jovem Fellipe Barbosa, fazendo seu primeiro filme; do outro, a vaidosa e decadente Laura, da geração anterior à dele. Ele, persistente, hábil e parece se fazer de ingênuo. Ela, maníaca e grosseira, guarda vestígios de fascínio.
Uma gravação feita em 2001, e outra sete anos depois, servem de prólogo. Na primeira, mesmo às cegas, sem operador, a câmera tem acesso pela única vez ao pequeno quarto do Dexter House Hotel, em Nova York, onde além de morar, Laura acumula uma variada tralha, há anos, em outro cômodo atravancado cuja porta mal consegue ser aberta. Compulsiva, acumula de tudo, inclusive roupas e objetos deixados na rua. A esse micro espaço confinado se contrapõe visão geral da megalópoles à noite, filmada em 2008, pela qual Laura circula à vontade, de bar em boate.
Quando o título surge na tela, em maiúsculas brancas sobre fundo preto, aos 4 minutos do documentário, já foram estabelecidos os dois pólos entre os quais a ação oscilará – em um extremo, o interior modesto onde Laura mora e guarda suas preciosidades, no outro os ambientes glamorosos que a seduzem. Segundo diz em voz off, ainda no prólogo, ela “deixa rolar”, entregou a vida a Deus e veio a Nova York para se divertir.
Depois de outro intervalo, quando a gravação é retomada em 2009, a face belicosa de Laura não tarda a se revelar. O fascínio pela mulher madura que, possivelmente, está na origem do projeto é substituído pela paciência necessária para conseguir levar o projeto a bom termo.
Na primeira sequência em seguida ao prólogo, depois de acabar de se arrumar diante da câmera, surge a primeira interdição – “Agora eu preciso que vocês cortem, por favor”, diz Laura. E em resposta à instrução dada por Felipe, em off, para que entre no quarto aborratado e desapareça do quadro, ela responde: “Você é idiota, mesmo, não? Quantas vezes eu disse que não dá para entrar no quarto. Não tem como entrar no quarto […] Quantas vezes eu tenho que falar a mesma coisa?” Felipe não reage, limitando-se a mandar interromper a gravação em voz off.
Esse é o tom que irá predominar no combate, o que não impede Laura de ser gravada momentos depois, em close, no táxi a caminho da festa onde verá Julia Roberts de longe e será ignorada por Clive Owen, mesmo estando a centímetros dele. O confronto prossegue, oscilando entre agressividade e afeto. Sempre à beira da ruptura, ela acaba ocorrendo mesmo, embora não seja definitiva. A produção é retomada mais uma vez, no inverno de 2010, e tem surpreendente final dançante, em que Laura, Fellipe e a pequena equipe comemoram o Ano-novo.
A origem da relação de Laura com Fellipe que, à primeira vista, pode parece improvável, permanece misteriosa, o que pode ser fator de certa perturbação. Como se conheceram? Quando surgiu a ideia de fazer um documentário sobre ela? Qual a reação inicial dela diante da proposta? Seria normal que Laura esclarecesse essas questões que permitiriam entender a gênese do projeto. Mas, na verdade, como o próprio filme deixa claro, “down and out” em Manhattan nenhuma possibilidade de contato, ainda que frustrado, distante ou fugaz, deve ser excluída para estudantes, prostitutas, cabelereiros, aventureiras e uma galeria de outros solitários personagens, imigrantes ou não. E a ausência de referências precisas sobre a origem do filme acaba sendo benéfica por não se tratar para Fellipe de contar a história de sua relação com Laura, mas sim de captar a conflituosa interação havida entre eles, na qual ele acaba sendo o grande vitorioso. Afinal, o filme conseguiu ser concluído, apesar de parecer em alguns momentos que isso não seria possível. Dessa maneira, Laura confirma a lógica segundo a qual o diretor é dotado de mais poder que seu personagem e tem meios para impor, com maior ou menor habilidade, sua vontade soberana.
se destaca entre os documentários brasileiros recentes por ser um registro conjugado no presente, ao contrário da tendência predominante de se voltar para o passado. Retratando situação pessoal vivida com intensidade, exposta a riscos múltiplos, Fellipe Barbosa, além de ousadia, revela grande talento.
Laura teve um fim de semana de pré-estreia no Instituto Moreira Salles – RJ, concluído ontem (20/10/2013), e estará em exibição no circuito Espaço, no Rio e em outras cidades, a partir de 1º de novembro. É um filme a ser visto.