No final de março, em entrevista pelo telefone ao The Guardian, a multiartista Laurie Anderson disse diante do mar da Bahia que ele é “extraordinariamente bonito”. Em seguida, respondendo a uma pergunta sobre Coração de cachorro, declarou que é “um filme sobre empatia” – “empatia quase pura” da sua cachorra, a rat terrier Lolabelle; empatia que ela teria tentado “expressar [no filme] da melhor maneira” que era capaz.
Lou Reed, marido de Anderson, falecido em 2013, a cujo “magnífico espírito” ela dedica Coração de cachorro, pertencia, diz Anderson, à categoria de pessoas que têm afinidade com cachorros. Lolabelle era muito querida dele. Quando o veterinário lhes disse que “precisaria ser sacrificada por que para viver teria que ficar em uma tenda de oxigênio, Reed perguntou: onde se consegue uma tenda de oxigênio? E nós conseguimos uma no mesmo dia, e ela viveu mais um ano.” (entrevista disponível aqui)
Coração de cachorro começa com a declaração de amor eterno a Lolabelle, feita por Anderson. Na entonação serena e cadência tranquila da sua própria voz, com pausas inesperadas no final de frases para enfatizar certas palavras, ela conta ter sonhado que pariu a pequena cachorra depois de ter “providenciado que fosse costurada” dentro do seu estômago. O filme mal começou (menos de três minutos se passaram com uma sequência de desenhos de Anderson) e isso tudo pode soar absurdo a quem não sabe a que extremos ela é capaz de chegar.
Exemplo: em uma noite gelada do início de janeiro deste ano, no auge do inverno novaiorquino, Anderson deu um concerto para cachorros, no Times Square, “tocando música composta – e reproduzida em frequência apropriada – para cães”. Segundo o repórter do The Guardian que teve a felicidade de testemunhar esse evento, “Anderson apareceu faltando quinze minutos para meia-noite e foi recebida por uivos dos humanos na plateia, e pouca reação dos cachorros. Usando jogging, tênis e parca, ela ocupou uma posição na base dos degraus da plataforma de Times Square onde os fãs dela tinham se reunido. Anderson pegou seu violino e o arco de fita, instrumento que ela inventou na década de 1970, e começou a tocar.
Através das caixas, a música mal era audível, dando impressão que alguém estava tocando um CD dentro de um sleeping bag. Foi assegurado à multidão, porém, que a frequência baixa tinha sido ajustada para o prazer dos cachorros. Fones de ouvido foram fornecidos para não-cachorros, através dos quais era possível ouvir o violino e os teclados de Anderson.
O show provocou uma reação imediata de Phoebe, cruza de border collie com pastor australiano, que trabalha de dia como cachorra terapêutica. Phoebe começou a latir alto enquanto a música fluía para dentro dos seus ouvidos. Não estava claro se isso era uma reação positiva.” (vale a pena ler a matéria completa, disponível aqui)
Diante disso, é preciso estar preparado, pois se pode esperar tudo, e mais um pouco, de Anderson. Ainda assim, quem não tem afinidade com cachorros só terá a perder se não der a devida atenção a Coração de cachorro e se recusar a levar Anderson a sério – ela ocupa lugar de destaque entre os artistas e cineastas que realmente têm algo a dizer.
Surpreendente é Anderson declarar, como fez em outra entrevista, que até Coração de cachorro começar a ser exibido em festivais ela não percebeu que “há mais morte nesse filme do que em qualquer car-crash movie. Todo mundo morre!” De fato, há um encadeamento de mortes – as de Lolabelle, das vítimas do 11 de setembro, do amigo e escultor Gordon Matta-Clark, do bebê que para de respirar, da mãe de Anderson etc. –, a respeito das quais ela reflete, somando à narração grande variedade de imagens, algumas ilustrativas, outras alusivas, que compõem a narrativa ensaística inspirada e com forte carga emotiva.
O melhor de Coração de cachorro são os momentos em que Anderson se deixa levar pela livre associação de ideias pessoais, como ainda no início do filme quando relaciona a expressão de Lolabelle, ao ser atacada por gaviões nas montanhas da California, à consciência de que era uma presa a ser caçada. E ao comparar o olhar de Lolabelle com o de seus vizinhos em Nova York logo após 11 de setembro “quando se deram conta, primeiro, que a morte podia vir do ar e, segundo, que seria assim dali em diante”.
Menos feliz é o uso de citações às quais Anderson recorre aqui e ali. Por mais interessantes que sejam, algumas frases de Wittgenstein ou Kierkegaard, citadas a torto e a direito, já se tornaram banais. Soam mal quando incluídas em forma de legenda e servem como sinais de alerta de que haja alto coeficiente de mistificação nisso tudo.
Anderson deixa clara sua admiração pela concentração dos tibetanos no “principal evento: a morte desta pessoa. E a tentativa de entender a morte sem auto-piedade. O ponto de vista dos budistas também é jornalístico: ver as coisas como são. Eu aprecio a ausência de choro por que sou puritana e cheia de culpa e dúvida. Sorte minha! Se você considera a morte um evento imenso principalmente na vida de outra pessoa, ela se torna muito mais impressionante. Eu me senti muito afortunada em ter essa compreensão.” (entrevista completa aqui).