Não é fácil admirar a obra de grandes criadores, quando estes assumiram, fora de sua arte, atitudes pessoais ou posições politicas desprezíveis.
É o dilema que os franceses enfrentam com aquele que é considerado por muitos o maior prosador do século XX (depois de Marcel Proust), o genial Céline, cujos romances são tão soberbos como são abjetos os panfletos anti-semitas que escreveu durante a guerra. Menos grave talvez, mas também muito controversa, foi a posição pró-fascista do grande poeta americano Ezra Pound, que animou um programa de rádio em que exaltava Mussolini e foi por isso internado por treze anos num asilo de alienados após a vitória aliada.
Muitos lamentam também que o grande cineasta americano Elia Kazan tenha aparentemente dedurado durante o macarthismo colegas da indústria com supostas simpatias comunistas.
Nesse contexto, o caso da cineasta alemã LeniRiefenstahl é emblemático. Morta em 2003, aos 101 anos, Leni foi uma mulher admirável sob muitos pontos de vista, a começar pela extraordinária beleza, que fez dela uma conhecida atriz ainda na adolescência.
Mas Leni tinha também outros talentos e logo tornou-se uma importante diretora de cinema em seu país, iniciando sua nova carreira aos 30 anos. Após a guerra, boicotada em bloco pelo mundo do cinema, tornou-se notável como fotógrafa e gozou de uma saúde privilegiada até sua morte.
Suas obras-primas são sem dúvida o filme , de 1935, considerada por muitos um marco da historia do cinema, ainda que trate do imenso comício nazista de Nuremberg, (que reuniu um milhão de pessoas), e Olímpia, de 1938, realizado durante os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936. Ambos os filmes são ainda hoje admirados pela estética original e pelas inovações técnicas da cineasta.
Os historiadores convergem em dizer que Leni Riefenstahl foi muito próxima de Hitler ? que admirava seus filmes e sua beleza ? e que o , apesar da brilhante cinematografia, foi, sobretudo, um filme de propaganda para o partido nazista, e uma exaltação pouco ética de um sistema político atroz.
Por décadas, Riefenstahl defendeu-se dessas acusações e disse que teve apenas com Hitler e seus asseclas o relacionamento mínimo que uma destacada diretora de cinema, lidando na época com os assuntos que lidava, não poderia deixar de ter.
Leni sempre afirmou que o filme Olímpia tinha sido encomendado pelo Comitê Olímpico Internacional, mas muitos estudiosos acreditam que o convite partiu de fato de Hitler e de outros dirigentes nazistas impressionados por Riefenstahl.
A carta aqui reproduzida é dirigida em julho de 1935 pela cineasta a Joseph Goebbels, o alucinado ministro de propaganda do regime nazista, que desejou Leni ardentemente, mas foi por ela rejeitado, segundo afirmou mais tarde.
Hospitalizada por uma infecção renal, a cineasta diz a Goebbels que “Graças aos venenos estou melhor e sem dor… Estou lendo tudo a respeito dos Jogos Olímpicos… Tenho agora uma ideia cada vez mais clara de como este tipo de filme deveria ser feito… Estou muito animada com este trabalho e de poder criarmos algo juntos neste momento… O Fuhrer veio ao hospital visitar o senhor [Rudolf] Hess e também veio ao meu quarto… um raio de sol nestes dias cinzentos”.
clique nas imagens para ampliá-las
Esta carta fazia parte dos arquivos conservados pelos herdeiros de Goebbels e que foram recentemente dispersados. Como o dirigente nazista suicidou-se com sua mulher após matar seus seis filhos, suas posses e seus papéis passaram para os sobrinhos.
Esta carta mostra agora claramente que o projeto do admiradíssimo filme Olímpia (escolhido pela revista Time entre os 100 maiores de todos os tempos) já estava avançado em meados de 1935, e que Riefenstahl achava necessário prestar contas dele a Goebbels, o que desmente frontalmente a versão da encomenda do Comitê Olímpico Internacional.