Emily estreia amanhã (5/1) em boa hora – chega às telas de cinema país afora na semana inaugural da terceira Presidência Lula, que encerra quatro anos tenebrosos da vida brasileira com presença feminina significativa à frente dos ministérios.
Primeiro filme como diretora e roteirista da atriz Frances O’Connor, Emily tem por premissa a defesa da liberdade de pensamento, à qual corresponde, de um lado, o direito de pensar por si mesma e, de outro, o compromisso de ser honesta, ainda que brutal, ao fazer comentários – nesse caso, liberdade, direito e compromisso específicos de uma mulher.
“Inspirada em eventos e pessoas reais, a história recorre também, em nome da eficácia dramática, à metamorfose ficcional e à invenção de personagens, incidentes, locações, diálogos e nomes,” conforme esclarecem os créditos finais.
A protagonista (Emma Mackey) é Emily Jane Brontë (1818-1848), poeta mais conhecida como autora de O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights), publicado um ano antes de sua morte, causada por tuberculose. Recebendo a princípio apenas reações de incompreensão e críticas hostis, o livro foi resgatado do esquecimento na década de 1880 e se manteve com regularidade desde então entre os três clássicos mais vendidos da língua inglesa. “Sempre admirei esse romance que entusiasmava os surrealistas por seu clima de paixão, pelo amour fou que devasta tudo”, declarou Luis Buñuel. Editado no Brasil em 1938, foi publicado em novas traduções diversas vezes a partir de 1947, a mais recente de Solange Pinheiro, em 2014.
Sem ser uma adaptação de O Morro dos Ventos Uivantes, Emily oferece, no entanto, nova perspectiva aos seus leitores (entre os quais confesso não me incluir) ou a quem assistiu a alguma das inúmeras versões realizadas a partir de 1920. A mais famosa sendo a de 1939, com Merle Oberon (Catherine Earnshaw) e Laurence Olivier (Heathcliff), dirigida por William Wyler a partir do roteiro de Ben Hecht e Charles MacArthur, revisto por John Huston (sem que seu nome conste dos créditos).
Entre outros filmes baseados em O Morro dos Ventos Uivantes, são também memoráveis Escravos do Rancor (Abismos de Pasión, 1954), de Buñuel, com trilha musical adaptada de Tristão e Isolda que o próprio diretor considerava um “verdadeiro desastre”; e há ainda a transposição de Andrea Arnold, lançada em 2011, na qual Solomon Glave e James Howson, atores de ascendência afro-caribenha, fazem o papel de Heathcliff, protagonista masculino até então interpretado sempre por atores caucasianos. No romance, porém, ele é descrito, de fato, como tendo aspecto de “cigano de pele escura” e sendo um “Lascar” (“marinheiro ou miliciano do subcontinente indiano, sudeste da Ásia, mundo árabe, regiões da Somália de colonização britânica ou outras terras a Leste do Cabo da Boa Esperança, empregado em navios europeus do século XVI até meados do século XX”, segundo a Wikipedia).
Cedendo a certa especulação romântica, para O’Connor em Emily trata-se de recriar as circunstâncias pessoais que levaram Emily Brontë a escrever O Morro dos Ventos Uivantes, vencendo barreiras e restrições para assegurar sua autonomia e o direito de tomar iniciativas de acordo com critérios próprios, contrários às convenções sociais e familiares de seu tempo.
Quando o adorado irmão rebelde de Emily, Branwell (Fionn Whitehead), entrega o primeiro capítulo do manuscrito que escreveu para ela opinar, ele diz: “Você precisa ser brutalmente honesta.” Passado algum tempo, após ter sido rejeitada pelo pároco assistente William Weightman (Oliver Jackson-Cohen), Emily comenta o texto seguindo ao pé da letra o pedido do irmão:
“…Você recebeu meu segundo capítulo?… O que achou? O que achou? Sinceramente” – Branwell diz a ela.
“Bem, é o texto mais presunçoso, rebuscado e preguiçoso… Eu nunca li um texto tão preguiçoso. É confuso. Metade do tempo, eu não consegui entender o que estava acontecendo. E o que realmente me perturba é que você obviamente não tem nenhuma noção do terrível, terrível escritor que você realmente é. Sinceramente, é ridículo. Seus personagens vão de um lugar para outro sem motivo. As descrições lacrimejantes de colinas e montanhas… E seus personagens principais têm a profundidade de seus esboços, obviamente roubados de Byron. E parece tão difícil para você evitar um clichê quanto uma bebida. E isso não é dizer pouca coisa porque você fica aqui, quase sempre chapado. E o que é desta vez? Ópio? Gim? Rum? É rum? Você fica aqui sentado à sua escrivaninha, neste buraco, com sua peninha, todo esperançoso quanto ao futuro e às lindas coisas que vão te acontecer. É patético! Eu não sei como você consegue chegar até o fim do dia.”
“Espero que você se apaixone um dia”, Branwell diz à irmã.
“Para que eu possa ser como você?”
“Para que você possa sangrar como o resto de nós.”
“Eu nunca serei como você.”
À honestidade brutal se seguem eventos trágicos, narrados na meia hora final do filme, que na visão de O’Connor levam Emily a escrever O Morro dos Ventos Uivantes. A começar pela carta de Weightman que ela só recebe tarde demais, na qual ele escreve: “Eu sei agora que só há uma verdadeira felicidade nesta vida: amar e ser amado.”
Em entrevistas à Variety, ao The Guardian e ao site Directors UK, publicadas em 2021 e 2022, Frances O’Connor disse que
“a inspiração [para escrever o roteiro e fazer o filme] veio de ver quem Emily era como pessoa. Eu senti que havia paralelos entre quem ela era quando jovem e minha própria experiência. Ao fazer o seu primeiro filme é bom começar com uma declaração de princípios artísticos e eu queria tratar da ideia de a mulher jovem ser uma artista através de Emily Brontë… Se você vai contar uma história agora, é bom falar às mulheres de uma forma viva, e não como se elas estivessem olhando através de uma caixa de vidro muito respeitosa… De certo modo, este é um bom momento para ser uma mulher: eu vejo uma geração mais jovem surgindo que é bem direta ao pedir o que quer, de uma maneira que talvez minha geração não tenha feito… Mas sempre há uma lacuna entre quem as mulheres realmente são e quem elas deveriam ser… E há certas questões que me interessavam explorar sobre ser autêntica como mulher e senti que isso é algo sobre o qual Emily realmente fala… Ela é apenas uma pessoa incrivelmente autêntica e só poderia ser ela mesma. E acho que isso é uma qualidade verdadeiramente admirável… Ela sabia quem era, e era meio excêntrica, e não se encaixava na norma da menina do lado. Ela era ela mesma e era feliz por ser assim… Ela passa por um momento – no qual estamos em nossa história – no qual decide aceitar quem ela é e embarca em uma verdadeira jornada para descobrir quem ela é. E no final, ela sabe quem ela é, e a partir daí ela pode escrever e se expressar. Isso é algo em que eu realmente acredito: que você precisa ter o tempo necessário para fazer essa descoberta. Mas não se trata de se tornar uma pessoa perfeita, apenas de se tornar uma pessoa.”
*
Destaque (XXIII): “…Em 4 de novembro de 2020, paralelamente à reunião do G20, que teve lugar em Riad, na Arábia Saudita, os ministros da Cultura do G20 realizaram uma reunião conjunta sobre ‘A ascensão da economia cultural: um novo paradigma’. Pela primeira vez as discussões políticas do G20 reconheceram a crescente contribuição da cultura para a economia global. Em uma mudança de paradigma acelerada pela pandemia de Covid, o G20 reconheceu a contribuição potencial da cultura em todo o espectro de políticas públicas para forjar sociedades e economias mais sustentáveis, nas quais a cultura é colocada no centro da discussão como um componente chave da recuperação econômica e social. ‘Repensar o futuro da cultura significa vê-la como muito mais do que um setor econômico. É uma necessidade abrangente, subjacente a todos os aspectos das nossas sociedades. Não é um custo, é um propósito. A cultura não deve ficar à margem dos esforços de recuperação, ela deve ser central para eles’, afirmou na ocasião Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco…”. Jom Tob Azulay, “O papel transversal da cultura”. Le Monde Diplomatique Brasil, Acervo Online, 20 de dezembro de 2022.