Mestre Zefa, a conceituada artista popular de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, morreu quatro dias depois do segundo turno da eleição presidencial. Sua morte, claro, nada teve a ver com a eleição, mas ela deixou uma lição que os políticos e governantes deste país deveriam assimilar com urgência. Meses antes, já pressentindo a iminência de sua partida para as “terras altas”, recebeu alguns jovens que foram gravar um documentário sobre ela e os aconselhou a trabalhar duro e com honestidade: “Não há riqueza maior do que o nosso nome”, arrematou.
Nascida em Poço Verde, no estado de Sergipe, Zefa morreu aos 93 anos. O pai dela chegou a fazer parte do bando de Lampião, mas abandonou o cangaço e morreu “de morte morrida” oito anos depois do extermínio do grupo pela polícia volante em Angicos, no sertão sergipano. Foi criada pelo avô, ouvindo as histórias do sertão. O único irmão que tinha a deixou em companhia da cunhada, Francisca, para trabalhar como auxiliar de pedreiro na construção de Brasília. Nunca mais deu notícias e as duas seguiram juntas vida afora.
O frei holandês Francisco Van Der Poel foi a primeira pessoa a reconhecer o valor artístico das esculturas de barro produzidas por Josefa. Mais tarde, ela passou a esculpir em madeira. O franciscano chegou a Araçuaí em 1967, quando o Vale do Jequitinhonha só era conhecido como um grande bolsão de miséria no país. Cinco anos depois, Zefa e a cunhada desembarcaram lá, vindas de Teófilo Otoni. Tinham ouvido falar de um lugar com muito ouro – “ouro só aí” – e viajaram, em lombo de burro, na esperança de garimpar nas águas dos rios Araçuaí e Jequitinhonha.
Não encontrando o ouro que procuravam, as duas mulheres buscaram outras formas de sobreviver. Francisca tornou-se empregada doméstica. Josefa passou a produzir malas, que vendia em feiras e na zona rural. Nas viagens pelas fazendas para vender as malas, começou a comprar objetos antigos para revender. Segundo ela me disse, passou alguns anos “mascateando joias de herança”.
Eu a conheci em 2012, quando já não fazia mais esculturas, durante uma viagem pelo Jequitinhonha em companhia da minha filha caçula, Cecília, para conhecer os artistas populares da região. Na oportunidade, estive com mais dois grandes escultores: a bonequeira Isabel, de Santana do Araçuaí (que morreu de câncer em 2014, aos 90 anos) e Ulisses Mendes, de Itinga, ainda vivo e produtivo. Zefa morava em uma casa simples que ganhara da diocese de Araçuaí. Sua antiga moradia – “praticamente uma casinha de João de Barro”, segundo definição de frei Chico – fora arrastada em uma enchente.
Josefa produziu mais de mais de mil peças em barro e madeira. Ela contou que não aprendeu o ofício com ninguém e que Deus foi seu mestre. Há obras dela em mãos de colecionadores na Itália, França, Holanda, Áustria e Estados Unidos. Por isso, a primeira coisa que me chamou a atenção em sua casa foi que não havia guardado nenhuma obra para si. Depois que estive lá, uma viúva alemã lhe doou três esculturas de madeira que o marido havia comprado. Ela poderia ter vendido as obras para melhorar seu conforto, mas entendeu que não seria correto se desfazer de um presente, nem faturar duas vezes pelo mesmo trabalho. Zefa me disse que parou de esculpir em 2008, porque já não tinha condição física para prosseguir trabalhando. Mas se vangloriava de só ter ido a médico (ao oculista) uma vez em nove décadas de existência. Tratava suas doenças com as beberagens que ela própria fazia.
As paredes da sala da artista eram decoradas de alto a baixo com imagens de santos e com fotos de artistas arrancadas de revistas. O então senador Aécio Neves e o papa João Paulo II ocupavam lugar de destaque. A do político era um cartaz de propaganda eleitoral que ela usou para enfeitar a parede, como fazem muitas famílias pobres do meio rural. Segundo José Pereira, ex-secretário de Cultura do município e um de seus amigos mais próximos, ela não dava importância a partidos políticos, mas admirava Lula e se filiou ao PT. Inclusive, cedeu sua casa para reuniões na implantação do diretório local, e dizia que matou muita galinha para o partido ser criado.
Extremamente religiosa, era respeitada como rezadeira e benzedeira. Conhecia rezas para todos os tipos de situação, inclusive para se comungar sem ter feito confissão com o padre. Mas, segundo frei Chico, não foi uma artista santeira. Retratou santos, mas também cangaceiros, garimpeiros e cenas da vida cotidiana no Vale, influenciada pelas histórias sobre o sertão ouvidas na infância.
Uma de suas obras em barro retrata um grupo de pessoas em torno de muita comida e um homem caído no chão. O frei pensou que a cena fosse uma crítica à má distribuição de renda e se surpreendeu com a explicação para o homem caído: “É sempre assim. Quando Deus dá tudo de uma vez, o pobre passa mal”, disse ela.
Todos a quem indaguei sobre a artista falaram do desprendimento dela com os bens materiais. Simplesmente, não dava importância ao dinheiro. Assim que vendia uma peça, promovia uma churrascada para amigos e vizinhos. No dia seguinte, voltava a depender da ajuda dos mesmos convidados. Viveu pobre, mas amparada. Segundo frei Chico, muitos cuidavam dela, davam-lhe remédios e alimentos, mas, para o desespero dos doadores, ela compartilhava com os outros até a cesta básica que recebia. “O pobre do meio rural sobrevive porque o povo salva o povo”, emendou frei Chico.
Para comprar as madeiras nobres de que necessitava para as esculturas, ainda segundo o frei, Zefa chegou a negociar com fazendeiros locais em sistema de meia: eles forneciam a madeira e ela lhes dava metade das obras produzidas em pagamento. Além disso, vendia fiado se o interessado não tivesse dinheiro. José Pereira lembra de um austríaco que levou esculturas para pagar quando chegasse em seu país e cumpriu a promessa. Ela tinha consciência de que suas obras se valorizaram. Por ocasião de sua morte, havia uma peça dela em oferta na internet por 2,5 mil reais.
Josefa gostava de relembrar sua história e de contar casos aos que a visitavam, como eu e minha filha, que lhe davam algum dinheiro em retribuição. Em nossa longa conversa, citou orações aprendidas na infância e rezas para cura de males pouco conhecidos nas cidades como “espinhela caída”, “vento virado” e “carne quebrada”. Relatou a única vez que viu o bando de Lampião, aos 11 anos, numa feira e de como se encantou com as roupas coloridas dos cangaceiros.
Meses atrás, em um depoimento filmado por jovens da cidade, voltou a falar sobre a importância de se ter um nome respeitado. “Passei fome demais e nunca esmoreci. Trabalhei ‘iguali’ doido. Meu martelo batia das sete da manhã às dez da noite, assombrando Araçuaí. Estou quase me indo. Mas meu nome fica.” Sua casa, de poucos móveis e muitas lembranças nas paredes, deve ser transformada em museu para preservar a memória da artista.