Em 14 de março de 2018, quando a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi assassinada no centro do Rio de Janeiro, a estudante do ensino médio Andreyna Rodrigues teve que consolar os amigos. Então com 17 anos, ela fazia aulas de dança no Museu da Maré, uma instituição cultural localizada no complexo de favelas onde Marielle se criou. E onde Rodrigues, ela mesma, vive desde que nasceu. “Eu não conheci a Marielle, mas nos corredores do Museu todos conheciam, sempre falavam de como ela estava marcada na nossa história”, diz a jovem. “O assassinato colocou a rapaziada numa onda de choque e tristeza.” A execução de Marielle e do seu motorista Anderson Gomes aconteceu há 5 anos. Os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz foram presos como autores dos crimes, mas as investigações ainda não identificaram os mandantes.
O Museu da Maré é administrado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o Ceasm, uma ONG formada em 1997 por moradores e ex-moradores do complexo de favelas que, depois de terem ingressado no ensino superior, desejavam ajudar outras pessoas a trilharem o caminho à faculdade. Em 1998, os voluntários ocuparam o salão vazio de uma igreja católica para ministrar aulas gratuitas de preparação ao vestibular. Rodrigues cresceu escutando que Marielle é parte da história do Ceasm porque a vereadora integrou a primeira turma do curso pré-vestibular. Abandonou as aulas depois que engravidou, mas, no ano 2000, retomou os estudos e obteve nota suficiente para ingressar na faculdade de Ciências Sociais da PUC-Rio com uma bolsa do Prouni. Depois, passou a conciliar as aulas da graduação com o trabalho de secretária na ONG.
Desde aqueles tempos, o pré-vestibular do Ceasm vem sendo uma alternativa para os jovens moradores da Maré que aspiram entrar na faculdade, mas não têm condições de custear os cursinhos particulares. Logo que terminou o ensino médio, Rodrigues seguiu o caminho dos amigos e se matriculou para participar das aulas. “A gente cresce ouvindo que, se quiser ser alguma coisa na vida, tem que fazer faculdade”, diz a jovem. Por pressão da família, ela atravessou 2019 estudando para entrar no curso de engenharia, mas não foi aprovada. Voltou ao pré-vestibular na turma de 2020, mas restou pouco tempo para os estudos porque precisou trabalhar para ajudar em casa. Acabou não passando no vestibular. Em 2021, na terceira tentativa, também não obteve aprovação.
“Os jovens chegam aqui com a formação básica muito defasada”, diz Emmanuelle Torres, umas das coordenadoras do curso pré-vestibular. “Eles estudam a vida toda na rede pública e, quando começam a se preparar para as provas das universidades, temos que fornecer o que o Estado não deu.” Com um projeto educacional que inclui aulas teóricas e atividades extracurriculares, o Ceasm aprova uma média de 30 alunos por ano no Enem e nos vestibulares das universidades estaduais, segundo Torres.
No início do ano passado, Rodrigues colocou na cabeça que não cederia à pressão da mãe e estudaria aquilo de que realmente gosta: artes. Passou 2022 se dividindo entre os estudos e o trabalho, ainda participava das visitações aos museus do Rio que os professores do curso organizaram. No último dia 1º de fevereiro, soube que foi aprovada para o curso de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ. “A galera do pré-vestibular ficou doida com a notícia, cara”, diz. “Parece até que eu estava contando para alguém da minha família.”
O Complexo da Maré é formado por um conjunto de dezesseis favelas, onde moram cerca de 139 mil pessoas, de acordo com Censo de 2010 do IBGE. De certos pontos, é possível avistar a Ilha do Fundão, onde se localiza o conjunto de prédios da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A Maré é perto de tudo. Da maior universidade do país, dos centros culturais, dos pontos históricos do Rio de Janeiro. O jovem daqui pode ir para qualquer lugar, mas às vezes não vai porque tem medo”, diz a pedagoga Shyrlei Rosendo, de 39 anos.
Marielle trabalhava na secretaria do pré-vestibular do Ceasm quando Shyrlei, aos 18 anos, chegou para estudar. “Naquela época, muitos amigos do meu círculo estavam indo para o cursinho. E eu não queria perder os meus amigos, então fui estudar também”, diz. Ao fim do primeiro ano de estudos, ela foi aprovada no vestibular de moda em uma universidade privada, mas não tinha dinheiro para custear as mensalidades. Marielle escutou os desabafos da colega e a ajudou a encontrar uma vaga de estágio remunerado que foi fundamental para Shyrlei pagar os estudos.
Durante um ano, a jovem se dividiu entre as aulas de Moda e as do curso pré-vestibular, que ela decidiu fazer de novo porque ainda queria estudar numa universidade pública. E conseguiu: em 2006, ingressou na faculdade de Pedagogia da UERJ. Se formou sete anos depois, em 2013, com um monografia sobre a juventude na Maré. O tema se repetiu em sua dissertação de mestrado, produzida na UFRJ.
Na época de Marielle e Shyrlei, as aulas de redação do curso eram ministradas por Eliana Sousa Silva, cria da favela Nova Holanda. “Marielle era inquieta. Tinha uma características em comum como todo jovem da Maré que chega nos cursos de pré-vestibular: o de enxergar na faculdade uma possibilidade de mudar a vida da família”, diz Silva. Ela é formada em letras e fez seu doutorado em serviço social e políticas públicas na PUC. Em meados da década de 90, coordenou uma pesquisa na Maré que constatou que menos de 1% dos moradores tinha acesso ao ensino superior. Foi esse diagnóstico que inspirou a criação do curso pré-vestibular.
No princípio dos anos 2000, Silva deixou a ONG para fundar outra, a Redes da Maré, que hoje também oferece curso de pré-vestibular a moradores do complexo de favelas. O trabalho é mantido com doações de pessoas e de empresas parceiras, o que garante o pagamento de uma bolsa aos professores e coordenadores do programa educacional. Dos 250 alunos que fizeram o curso em 2022, 33 foram aprovados. Para 2023, mais 250 pessoas se matricularam.
Grande parte da equipe educacional do Redes da Maré é formada por moradores da Maré que estudaram no pré-vestibular, ingressaram no ensino superior e depois voltaram os seus conhecimentos para a Redes da Maré. É o caso de Shyrlei Rosendo, que agora coordena o Eixo de Direitos Urbanos Socioambientais da ONG. Na percepção dela, o assassinato de Marielle mudou a urgência dos jovens da Maré por um futuro seguro.
“A trajetória da minha amiga não foi linear. Marielle tem filho, para de estudar, começa a trabalhar, vai para a universidade, se vira como dá. E, quando chega onde sempre almejou, um lugar que lhe garantiria mais autonomia, matam ela”, diz Rosendo. “Isso tudo bateu em nós com muita tristeza. Já tiveram várias chacinas na Maré, mas a morte da Mari tem um outro peso. O tempo trouxe a consciência de que o trabalho do Redes da Maré não poderia parar porque há jovens estudantes lá fora torcendo para que o futuro deles seja diferente.”
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em doadores e parceiros estratégicos, o pré-vestibular do Ceasm nunca teve segurança financeira. “No início dos anos 2000, o curso ainda podia contar com a ajuda de instituições e doadores para se sustentar. Agora fazemos um trabalho de formiguinha, tirando dinheiro de onde dá”, diz a coordenadora Emmanuelle Torres. A coordenação pede aos alunos matriculados uma colaboração mensal de trinta reais, mas poucos conseguem pagá-la com regularidade. O dinheiro que chega é usado para a manutenção do espaço e dos materiais escolares. Todos os professores do curso em que Marielle Franco estudou são voluntários. Eles passam os dias e as tardes em empregos formais para, de noite, ministrar as aulas na Maré.
A maioria dos educadores é formada por egressos do pré-vestibular que, depois de obterem o diploma do ensino superior, retornaram para lecionar. Não raro, a Maré foi objeto de pesquisa dos seus trabalhos de conclusão de curso da graduação e objeto de pesquisa no mestrado e no doutorado. Ao que tudo indica, o mesmo pode acontecer com Andreyna Rodrigues. As aulas da faculdade de Artes Visuais ainda não começaram, mas ela já sabe o que quer fazer da vida depois da formatura. “Vou trabalhar com cultura na Maré”, diz. “Organizar atividades para as crianças no museu, ajudar nas aulas do cursinho. Eu e a rapaziada ainda temos que fazer muito pela Maré. Ir embora daqui não está nos nossos planos.”