A morte de Genivaldo de Jesus Santos após ser abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no município de Umbaúba, em Sergipe, recoloca no debate o tema da formação policial. Santos era esquizofrênico e foi parado porque estava andando de moto sem capacete. Terminou sua existência no porta-malas da viatura, se contorcendo, asfixiado pelo gás lacrimogêneo de uma bomba jogada pelos agentes da PRF, em uma sessão de tortura filmada pela população local.
Este episódio se soma a outro, ocorrido há dez dias em Fortaleza, Ceará, que culminou na morte dos policiais rodoviários Márcio Hélio Almeida de Souza e Raimundo Bonifácio do Nascimento Filho. Ao abordarem um homem em situação de rua, um dos agentes teve sua arma de fogo roubada e ambos acabaram mortos pelo suspeito. Os dois casos coincidem com alterações recentes na matriz curricular de formação dos policiais rodoviários e com a extinção das comissões regionais de direitos humanos no âmbito da instituição.
O projeto pedagógico de ação educativa vigente no Curso de Formação Profissional (CFP), exigência para aqueles que passam no concurso para a Polícia Rodoviária Federal, tem 476 horas-aula, sendo 90 horas de ensino à distância e 386 horas de formação presencial. No entanto, praticamente desapareceram da formação oficial desses policiais disciplinas que permitiriam aos profissionais lidarem com situações como a que vitimou Santos ou os policiais rodoviários.
Conforme grade de aulas do CFP de 2022, a disciplina direitos humanos e integridade foi completamente eliminada do currículo deste ano. Sua ementa inclui: “PRF como promotora de Direitos Humanos; Grupos vulneráveis; Violência contra a mulher; Crime análogo à escravidão, tráfico de pessoas; Abordagem policial a grupos vulneráveis.” Essa disciplina tem hoje zero horas. Isso mesmo, zero horas. Nenhuma.
Já a disciplina uso diferenciado da força (UDF), cuja ementa trata da “Legislação internacional e nacional do uso da força; Modelos de uso da força das instituições policiais e o adotado na PRF”, bem como sobre “Doutrina para situações de contaminação por gás lacrimogêneo” ou “Efetuar a descontaminação quando for submetido ao gás lacrimogêneo” tem um total de 4 horas-aula presenciais e 8 horas no ensino à distância. Para se ter uma ideia, a disciplina armamento, munição e tiro acumula 66 horas no módulo presencial e 10 horas em EAD.
Até 2018, o currículo de formação profissional da PRF concentrava entre 22 e 30 horas-aula da disciplina de direitos humanos. Nos últimos anos, a disciplina foi sendo reduzida gradualmente; em 2021 eram 11 horas-aula fundidas em uma disciplina que concentrava relações humanas, ética e direitos humanos, até se transformar em zero horas no currículo de 2022.Com a extinção da disciplina, as temáticas de direitos humanos passariam a ser abordadas em outras disciplinas, segundo o projeto pedagógico do curso de formação dos policiais rodoviários federais.
As alterações motivaram um manifesto datado de 14 de maio de 2021, assinado pelos instrutores da disciplina “direitos humanos e cidadania – DHC” e entregue ao coordenador-geral da UniPRF (Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal). No documento, os professores afirmam: “Ao longo dos últimos anos, a PRF vem sendo reconhecida como instituição de destaque nacional na proteção e promoção de direitos humanos, tendo sido agraciada com diversos prêmios e também contemplada com recursos advindos de Termos de Ajustamento de Conduta, de forma que a eventual exclusão da disciplina DHC do CFP pode repercutir negativamente na imagem institucional e, consequentemente, inviabilizar novos reconhecimentos a partir da interpretação como forte indicativo de que o ato de cuidar e proteger passou a ser negligenciado. Assim, uma gestão institucional que se alicerça em critérios e fundamentos técnicos não pode abdicar da valorização da temática direitos humanos em seu curso de formação para novos policiais.”
Em uma democracia, cabe às polícias a manutenção da ordem pública e a defesa e promoção de direitos da população. Não à toa, a democratização do país na década de 1980 foi seguida da revisão das matrizes curriculares dos profissionais de segurança pública de todo o país, fossem eles guardas municipais, policiais estaduais ou federais. O ensino dos direitos humanos – expressão demonizada por Bolsonaro e seu governo – passou a ter centralidade na formação de policiais.
A noção de formação em direitos humanos, longe de se restringir a concepções filosóficas sobre direitos ou deveres, pauta-se pela necessidade diária dos profissionais. São reflexões e saberes como estes que permitem ao policial desenvolver habilidades que o permitam intervir nas mais variadas situações, como o reconhecimento e a identificação de violações de direitos humanos que fazem parte do cotidiano de um policial rodoviário, tais como a exploração sexual infantil, trabalho escravo, pessoas em situação de rua e portadoras de transtornos mentais.
Também para lidar com situações como essas, o profissional de segurança pública precisa ser instrumentalizado de saberes específicos relativos à abordagem policial e ao uso diferenciado da força. Como conduzir uma abordagem ou como manejar instrumentos de menor potencial ofensivo são alguns aspectos tratados nas disciplinas de formação.
O boletim de ocorrência registrado pelos policiais após o incidente que resultou na morte de Genivaldo Santos fala no “uso das tecnologias de menor potencial ofensivo, com o uso de espargidor de pimenta e gás lacrimogêneo” e afirma que os policiais teriam “empregado legitimamente o uso diferenciado da força”, exatamente os temas previstos nas duas disciplinas que praticamente inexistem na formação da PRF.
Em outra demonstração de ataque à própria noção de preservação dos direitos humanos, a Portaria DG/PRF 456, de 3 de maio de 2022, revogou as portarias que instituíram as Comissões Regionais de Direitos Humanos e as Bases Descentralizadas de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal, estruturas estaduais responsáveis por operações de combate à exploração sexual infantil, trabalho escravo e afins. Suas funções foram aglutinadas na Diretoria de Gestão de Pessoas e nas unidades de gestão de pessoas.
Um dia antes da morte de Santos, a PRF participou de uma ação conjunta com a Polícia Militar do Rio de Janeiro na Vila Cruzeiro, que resultou em 25 mortes. A justificativa foi que ela foi chamada para dar apoio à ação da PM do Rio de Janeiro. Aliás, esse também foi o argumento de outra operação que teve a participação da PRF que gerou, em uma mórbida coincidência, o mesmo número de mortes. Foi a ação contra o novo cangaço em Varginha, no Sul de Minas Gerais, em outubro de 2021. Ao que tudo indica, Bolsonaro está conseguindo o que queria: acabar com a profissionalização de uma força policial com mais de noventa anos de existência e transformá-la em uma tropa de intervenção (pouco) tática para mobilização e utilização discricionária pelos gestores políticos.
Além das dúvidas sobre a legalidade de tal arranjo, outra questão se impõe. A PRF não tem efetivo para ser, ao mesmo tempo, tropa de intervenção e Polícia Rodoviária. O efetivo total da corporação é de cerca de 12 mil pessoas, o que, operacionalmente, dá algo como 3 mil policiais disponíveis por turno de serviço.
Os assassinatos de Genivaldo de Jesus Santos, Márcio Hélio Almeida de Souza e Raimundo Bonifácio do Nascimento Filho deveriam acender os alertas dos órgãos de fiscalização de controle da atividade policial. Elas sinalizam para opções político-institucionais e não somente para erros ou crimes dos agentes individualmente. O Brasil vive um momento de radicalização político-ideológica das polícias e é preciso interromper esse movimento urgentemente.