Numa manhã de agosto de 2020, em pleno alto verão na Europa, o matemático Luís Miguel Marques, 63 anos, paraplégico desde os 8 anos, contou com a ajuda de três amigos para percorrer os 2 mil km que separam Lisboa de Zurique, na Suíça. A viagem de mais de 30 horas tinha um objetivo: exercer o direito de pôr fim à própria vida graças à eutanásia, questão discutida na Assembleia da República de Portugal desde 2016. Ele tomou a medida depois de cansar de esperar pela decisão da Assembleia. Marques dependia de um ventilador para respirar, tinha câncer e doenças crônicas. Ao iniciar a viagem final, lamentou ter de “deixar a terra natal” e “sofrer como um cão” para “conseguir morrer dignamente”. A cena está no documentário Até o Fim, exibido em setembro de 2020 pela televisão pública portuguesa, que informou ainda que Luís Marques contraiu paralisia após o pai não permitir que os filhos fossem vacinados contra a poliomielite nos anos 1960.
“Estar numa cama (mesmo) sem dor não é existir; se as pessoas querem isso para elas, querem ficar no meu lugar, (que o façam), mas eu não quero nada disso”, afirmou, convicto. A dura história e a frase do matemático foram lembradas no plenário em junho último, quando o Parlamento português aprovou, na terceira votação desde o início de 2021, o direito à eutanásia, também chamada de morte medicamente assistida. Luís Miguel tomou sua decisão após a primeira tentativa de aprovar a medida ter sido rejeitada no Parlamento, em 2018, e depois que sua mãe, grande amiga e cuidadora, faleceu em 2019. “Sem ela aqui, não tenho mais constrangimentos”, explicou. “O que fica é o amor de mãe, e, antes da paralisia, a chuva, as árvores”, contou, lembrando da infância na África, de onde só voltaria em 1975, após a Revolução dos Cravos, que pôs fim à colonização lusa, já mantida por meios bélicos, naquele continente.
Na votação do último dia 9 de junho, a terceira versão da lei foi aprovada por um placar de 128 votos favoráveis e 88 contrários. Para a lei entrar em vigor, porém, ainda precisa de nova votação final na Assembleia, simbólica. Depois, segue para o presidente da República, que pode promulgar, vetar ou enviar novamente o projeto ao Tribunal Constitucional, mas quem terá a última palavra é o Parlamento. Enquanto a lei não entrar em vigor, o que deverá ocorrer neste segundo semestre, um médico (ou qualquer outra pessoa) que ajude alguém a morrer em Portugal poderá ser preso por até cinco anos por crime de homicídio privilegiado, homicídio a pedido da vítima ou incitação ao suicídio.
A nova aprovação pelo Legislativo da lei da eutanásia trouxe de volta outra pioneira na defesa da despenalização da eutanásia em Portugal: a filósofa e professora Laura Ferreira dos Santos, fundadora do movimento Direito a Morrer com Dignidade. Ao contrário do que se poderia imaginar, a principal voz em favor da morte assistida professava a fé católica, como a maior parte de seus conterrâneos. Paciente de câncer, a professora Laura morreu em dezembro de 2016, aos 57 anos, depois de escrever quatro livros sobre o assunto, inclusive as versões 1 e 2 do Diário de Uma Mulher Católica A Caminho da Descrença. Em uma de suas últimas entrevistas, Laura contou que não iria à Suíça, como faria anos depois Luís Marques, porque insistia em morrer em casa. Essa entrevista é comentada até hoje por seu caráter polêmico: a ativista admitiu publicamente a possibilidade de se matar. “Sou eu que agora me vejo na situação de pensar em suicídio. Estou entre a espada e a parede”, afirmou. “Tenho acesso a um produto letal, sei onde arranjar (a droga) e equaciono usá-la”, avisou. Entretanto, o viúvo de Laura, o professor de literatura Luís Mourão, que viria a morrer em 2019, disse à imprensa portuguesa que ela “não teve de chegar a isso” – e teria morrido naturalmente. Já companheiros de causa da professora afirmam até hoje desconhecer “as circunstâncias específicas” de sua morte.
O manifesto do grupo Direito a Morrer com Dignidade, assinado por mais de 8 mil personalidades, abriu o debate político sobre um tema que os portugueses classificam desde sempre como “fraturante”, por envolver questões de consciência. Pesquisas de opinião realizadas de 2016 a 2020 mostraram que a maioria do país era a favor da eutanásia. Um dos que dão continuidade ao trabalho é Paulo Santos, 59 anos, doutor em psicologia e professor da Universidade do Porto. “No início de 2016, conheci pessoalmente a Laura, começamos a manter um contato regular e foi ela quem me convidou para integrar a Direito a Morrer com Dignidade”, relatou à piauí. Ele afirma sempre ter defendido “a legitimidade de um indivíduo em sofrimento extremo, por doença grave ou lesão altamente incapacitante, colocar fim à sua vida, desde que essa sua decisão seja informada, livre e reiterada”. Mas, acrescentou, só se engajou na descriminalização da eutanásia depois de ler o livro de Laura Ferreira, Ajudas-me a Morrer? – A Morte Assistida na Cultura Ocidental do século XXI, publicado pela primeira vez em 2009.
Santos não é religioso e relata não ter discutido muito esse aspecto com Laura, cuja militância ganhou destaque também porque os mais fortes opositores da entrada em vigor na eutanásia em Portugal são justamente os representantes da Igreja Católica. Laura, portanto, debateu com seus iguais, na mesma arena. “Não é a morte em si que me preocupa. É antes o filme de terror que pode ser, para uma pessoa, a sua despedida desta vida. E não me parece nada que Cristo pretendesse que essa passagem tivesse de ser tão difícil, que as pessoas tenham de sair desta vida numa tão grande agonia”, escreveu.
Santos acompanha as idas e vindas do processo legal, muitas de responsabilidade do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (PSD), que é católico praticante. Em janeiro de 2021, quando o Parlamento aprovou pela primeira vez a eutanásia, com alguns votos favoráveis do seu partido, Marcelo, em vez de promulgar a lei, enviou-a ao Tribunal Constitucional (TC) – medida à época defendida em nota oficial pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que agora recorreu ao mandamento “Não Matarás” para criticar a reiterada decisão do Parlamento. Em março do ano passado, o TC questionou algumas descrições científicas usadas como referência para permitir a antecipação da morte. A lei voltou ao Legislativo, foi aperfeiçoada como recomendou o tribunal, mas mesmo assim terminou vetada por Rebelo no final de 2021. Dessa vez, ele implicou com o suposto “alargamento” da definição de doença fatal. Em 9 junho, o texto básico da eutanásia foi aprovado de novo e até setembro sairá o texto final, com as chamadas “especialidades”. Santos considera que foi importante a lei passar em 2021 pela avaliação dos juízes “porque acabou definitivamente com o argumento de que a morte medicamente assistida seria sempre inconstitucional por causa do ponto 1 do Art.º 24º da Constituição da República Portuguesa que estabelece que a vida humana é inviolável”. Ele lembra que a presidência do Tribunal Constitucional esclareceu que “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”. E confia que em breve a lei valerá em Portugal.
Se depender do presidente da República, será necessário mais um pouco de paciência. Questionado pela piauí se está satisfeito com a lei da eutanásia depois de uma arguição de constitucionalidade, um veto e três votações, Rebelo disse que ainda precisará examinar o texto que o Parlamento vai lhe enviar, antes de se pronunciar. Ele continua a ter a opção de promulgar, vetar, mandar para o Tribunal, mas agora o Legislativo poderá reconfirmar a lei e dar enfim a última palavra. Indagado se é a Igreja Católica que dificulta a entrada em vigor da eutanásia em Portugal, Marcelo tergiversou. “Há religiões com dogmas mais radicais do que os nossos”, observou.
Mesmo quem votou contra a morte assistida por convicções filosóficas e religiosas, como a deputada do PS Romualda Fernandes, julga que “não há mais dúvidas a serem sanadas, porque o trabalho jurídico foi bem feito”. “Idealizo uma sociedade em que as pessoas sejam assistidas para preservar a vida nas melhores condições, sobretudo em cuidados paliativos, mas reconheço que há hoje uma maioria sociológica na Assembleia da República que é a favor da eutanásia”, analisa Romualda, única representante negra no Parlamento português.
Ex-parlamentar e professor da Universidade de Coimbra, José Manuel Pureza é, como Laura Ferreira, caso raro de cristão que apoia a eutanásia. E entende que a lei que despenaliza a morte assistida promove a tolerância e o respeito a opiniões e decisões livres e conscientes sobre o fim de vida. “É uma lei que não obriga ninguém a ter um comportamento que desrespeite as suas convicções profundas”, frisa. “O que existe agora – a condenação a pena de prisão do profissional de saúde que ajude quem quer antecipar a sua morte – é que violenta inaceitavelmente as convicções e sensibilidade de muita gente”, argumenta.
Se a aprovação da morte assistida de fato entrar em vigor, Portugal se juntará a um pequeno grupo de países europeus que autorizam a medida. Holanda, Bélgica e Suiça foram os primeiros do Velho Mundo a permitir a eutanásia e/ou o suicídio assistido – quando é feito sem exigência de médicos. Recentemente a Espanha, que começou o processo legislativo depois de Portugal, legalizou a eutanásia, mas a constitucionalidade da lei já está sendo questionada. No final de 2021, a Áustria também aprovou o procedimento para pacientes terminais ou que sofrem com doença classificada como incurável.