“Oi, pessoal!”, saudava um vira-lata amarelo, em um vídeo de propaganda do governo publicado na internet. Dublado com voz jovial, o cachorro pedia que tratassem com carinho seu “primo selvagem”, o lobo-guará, que dali em diante passaria a estampar as novas cédulas de 200 reais. Lançadas em setembro, as notas não fizeram sucesso – até hoje, apenas 13% das que foram encomendadas pelo Banco Central entraram em circulação. Por outro lado, a propaganda ajudou a engordar a dívida brasileira. Foi uma das muitas despesas que o governo federal bancou, em 2020, com dinheiro arrecadado por meio da emissão de títulos públicos. Usado à exaustão, esse mecanismo fez a dívida da União disparar.
Uma estimativa feita pela Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, aponta que o Brasil fechou o ano passado com uma dívida equivalente a 90,1% do valor do PIB, a proporção mais alta da série histórica. Em 2019, esse índice havia sido de 74,3%.
A principal explicação para esse rombo recorde é a pandemia. O coronavírus não apenas exigiu mais despesas emergenciais como provocou queda na arrecadação de tributos. Levantamento feito pela piauí a partir de dados do Tesouro Nacional mostra que, de todos os gastos decorrentes da pandemia, ao menos 248,5 bilhões de reais foram pagos pelo governo por meio da emissão de títulos públicos. São despesas para as quais não havia dinheiro disponível em caixa e pelas quais o governo terá de arcar com juros. Cerca de 66% desse valor foi usado para viabilizar o pagamento do auxílio emergencial, que evitou temporariamente o aumento da pobreza no país.
Mas também foi por meio de endividamento que a União bancou, por exemplo, a maior parte do financiamento das campanhas municipais de 2020. De um total de 2 bilhões de reais do Fundo Eleitoral, 1,8 bilhão de reais foram pagos por meio da emissão de títulos públicos. O dinheiro foi repassado à Justiça Eleitoral, responsável por distribuí-lo entre os partidos políticos. Além disso, o governo se endividou para custear 90 milhões de reais em propagandas da Presidência da República – entre elas, a que anunciava o lobo-guará.
A campanha para divulgar as novas cédulas de 200 reais custou 14,1 milhões de reais, pagos à empresa Profissionais de Publicidade Reunidos S.A., que atende pelo nome fantasia NBS. O Banco Central informou que a produção e a distribuição das notas seguem o cronograma planejado, embora, do total de 450 milhões de cédulas encomendadas, apenas 57 milhões estejam circulando no país atualmente. Questionada pela reportagem, a Secom não informou em que veículos a campanha foi transmitida.
Só no mês de dezembro, a União pegou dinheiro emprestado por meio de títulos para financiar outras duas campanhas publicitárias, ao custo total de 22,2 milhões de reais. Em ambos os casos, a empresa contratada foi a Calia/Y2 Propaganda e Marketing. A primeira campanha trata do uso consciente de energia e água; a segunda, do papel do governo na promoção do desenvolvimento. De acordo com a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), as duas campanhas serão veiculadas até fevereiro. Questionada pela piauí, a Secom não informou em que veículos elas foram divulgadas. Disse apenas que as campanhas estão no ar desde dezembro na tevê aberta, rádio, internet e até no exterior.
O mais recente relatório de projeções da dívida pública, divulgado pelo Ministério da Economia no final de outubro, estimou que os gastos públicos, sem contar o pagamento de juros, ultrapassaram a arrecadação total num montante equivalente a 12,7% do PIB em 2020. Mesmo sem os dados completos do ano, a própria equipe do governo reconheceu se tratar de um déficit primário sem precedentes.
A piauí questionou o Ministério da Economia sobre os critérios usados para escolher quais despesas seriam pagas por meio da emissão de títulos do Tesouro. De acordo com a pasta, o endividamento banca despesas para as quais não há previsão de arrecadação de receitas próprias e/ou vinculadas, depois de esgotadas as demais fontes de receita.
Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente, avalia que não há ilegalidade ou erro por parte do governo ao emitir títulos para pagar despesas como campanhas publicitárias. Tudo é permitido, contanto que, no conjunto dos gastos públicos, a União respeite a “regra de ouro” – dispositivo da Constituição que impõe limites ao crescimento da dívida. Em maio, porém, o Congresso aprovou o “orçamento de guerra”, pacote que flexibilizou os gastos públicos durante a pandemia. Uma das medidas incluídas nesse pacote foi justamente a suspensão, até 31 de dezembro, da “regra de ouro”.
“A dívida está em nível elevado e a tendência é de crescimento”, afirmou Salto, que se mostra preocupado com novas pressões sobre as contas públicas em 2021. “É verdade que, em 2020, não havia outro caminho para financiar os gastos contra a Covid e suas consequências sobre a renda e o emprego. Mas o Brasil vem de uma situação fiscal frágil.”
Problemas crônicos da gestão fiscal, como o déficit da Previdência Social e o alto custo do funcionalismo civil e militar, respondem por uma parcela expressiva de tudo o que foi pago com a emissão de títulos públicos em 2020. Num ranking das maiores despesas responsáveis pelo aumento da dívida, logo abaixo do pagamento do auxílio emergencial e do socorro a estados e municípios, decorrentes da pandemia, está o pagamento de aposentadorias e pensões do INSS. Parte do custo de salários, aposentadorias e pensões pagos pela União a civis e militares aparece em seguida na lista de maiores gastos.
Além dos problemas fiscais crônicos e da pandemia, o levantamento da piauí identificou cerca de quinhentas ações orçamentárias pagas via emissão de títulos públicos. Entre elas estão despesas de caráter sigiloso do Ministério da Defesa. A pasta, aliás, é uma das principais responsáveis pelo incremento da dívida pública, depois do Ministério da Cidadania, de onde saíram os recursos do auxílio emergencial e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência. No ano passado, por exemplo, a Defesa recorreu aos títulos públicos para pagar combustíveis e lubrificantes de aviação e parte dos gastos da Operação Verde Brasil 2, que tem como objetivo combater o desmatamento ilegal na Amazônia.
Nem a Abin – a Agência Brasileira de Inteligência – fugiu à regra. O endividamento do governo serviu para bancar, no ano passado, parte dos 105 milhões de reais gastos pela agência em ações de inteligência. O dinheiro dos títulos públicos também foi parar no programa Criança Feliz, do Ministério da Cidadania, focado no desenvolvimento de crianças de até 6 anos. Lançado pela ex-primeira-dama Marcela Temer em 2016, o programa conta com uma defensora de peso no governo: a primeira-dama Michelle Bolsonaro.