De início, o pediatra F.C.*, de 42 anos, sentiu a cabeça pesar e as juntas das mãos doerem. Cinco dias depois, pequenas feridas vermelhas, semelhantes a espinhas, se espalharam pelas costas dele. Na manhã seguinte, uma nova ferida apareceu no dorso de sua mão direita e liquidou qualquer dúvida: F.C. havia contraído a monkeypox – doença que se popularizou no Brasil como varíola dos macacos. Com o diagnóstico confirmado pelo infectologista Vinicius Borges, o pediatra se afastou dos três hospitais onde é intensivista e se confinou no quarto de hóspedes do seu apartamento, em São Paulo, para não contaminar o namorado.
Durante onze dias, F.C. assistiu às feridas multiplicarem-se. No momento mais agudo, contou setenta delas, muito rosadas e doídas. A febre e a indisposição que acompanharam as primeiras eclosões diminuíram rapidamente. Quando as feridas clarearam, a virose parecia ter chegado ao fim. Na manhã do dia 16 de setembro, sexta-feira, o pediatra encerrou o isolamento doméstico, mas à noite começou a sentir uma coceira insistente no olho esquerdo.
No sábado, acordou com a vista dolorida, inchada e vermelha. Ele correu para um pronto-socorro oftalmológico e recebeu o diagnóstico de infecção nas pálpebras O colírio lubrificante que lhe receitaram não surtiu efeito, e a vermelhidão piorou. No domingo, F.C. voltou ao hospital e descobriu que estava com úlcera de córnea. Passou a pingar um colírio antibiótico a cada hora, mas os sintomas continuaram. De acordo com o Ministério da Saúde, as complicações oculares decorrentes da monkeypox podem não só causar úlceras como reduzir a capacidade de o paciente identificar a forma e o contorno de objetos ou imagens. Em casos extremos, acabam levando à cegueira.
Na terceira ida ao pronto-socorro, enquanto aguardava atendimento, o pediatra mandou uma mensagem sobre a lesão ocular para seu infectologista. “Ele me respondeu imediatamente: ‘Isso é grave! Você vai precisar de tratamento sistêmico.’” Embora não haja remédios comprovadamente eficazes para combater a varíola dos macacos em humanos, a prescrição do antiviral tecovirimat tem se mostrado promissora e segura no mundo inteiro. A droga costuma ser empregada também contra a varíola comum. Era a esse tratamento que o infectologista se referia.
Em agosto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou o uso compassivo da medicação no Brasil. Ou melhor: autorizou que a substância seja ministrada experimentalmente apenas em pacientes de monkeypox que não têm outra opção terapêutica. Como o remédio não está disponível nas farmácias, F.C. e seu infectologista o pediram ao Ministério da Saúde em 21 de setembro. No mesmo dia, a pasta respondeu que os doze frascos do antiviral remetidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o Brasil já haviam sido utilizados. Cada frasco continha 42 cápsulas. Só restava ao pediatra esperar um novo lote, ainda sem previsão de chegada.
Na infância, F.C. sofreu uma lesão no nervo ótico. Em consequência, ficou estrábico e perdeu uma parte da visão direita. Agora, ele corre o risco de perder também o olho esquerdo. “Quando conto um pouco do que vem me acontecendo, as pessoas são muito gentis. Prometem rezar por mim e perguntam como podem ajudar”, diz o pediatra. “Nem sei o que responder. Se fosse sincero, falaria que minha visão está cada vez mais embaçada e que o único remédio capaz de me curar se encontra em falta.”
O vírus que causa a monkeypox parece o da varíola comum, mas é menos letal e desencadeia uma infecção diferente. Descoberta em 1958, a enfermidade se concentra em países da África Ocidental e Central, principalmente na República do Congo, onde vivem os roedores que hospedam o patógeno e o transmitem para os seres humanos. “Como toda doença mais restrita ao continente africano, essa também foi negligenciada pelas autoridades sanitárias”, explica Clarissa Damaso, virologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das raras pessoas no Brasil que estudam o Orthopoxvirus, gênero do qual faz parte o agente infeccioso da varíola dos macacos.
Em maio deste ano, houve a confirmação de um caso de monkeypox fora da África, na Inglaterra. Era o começo de um surto global sem precedentes da doença. Naquele mês, Damaso procurou a equipe técnica do Ministério da Saúde e montou um plano para conter a transmissão, na hipótese de a enfermidade chegar aqui.
Em junho, São Paulo registrou a primeira ocorrência no Brasil. Desde então, o governo federal contabilizou 8.543 casos confirmados e quatro mortes. Há, ainda, 4.760 casos suspeitos. O Ministério da Saúde não divulga quando os sintomas dos pacientes começaram nem a quantidade de recuperados, informações essenciais para o controle epidemiológico. “Mesmo trabalhando com o Orthopoxvirus há 35 anos, nunca imaginei que seríamos acometidos por um surto tão grande quanto o atual”, afirma Damaso. Em 2022, o Brasil já é o segundo país mais impactado pela monkeypox em números absolutos. Supera os da África e fica abaixo apenas dos Estados Unidos. “Tudo sugere que estamos caminhando para o pico das transmissões. Só não posso garantir porque as informações do governo chegam incompletas”, diz o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, que mapeia a varíola dos macacos para o portal Rede Análise.
No princípio do surto, a enfermidade afetava especialmente homens que fazem sexo com homens (HSH) e possuem múltiplos parceiros. Como o Ministério da Saúde não fornece o perfil dos pacientes, é difícil saber se o grupo continua sendo o mais atingido. Entre as teses levantadas pela comunidade científica para justificar o fenômeno, está a possibilidade de o vírus ter começado a se disseminar fora da África a partir de redes sociais que promovem encontros de HSH. Mas a doença não é transmitida somente pela via sexual. A infecção também se dá por meio do contato prolongado com as lesões que o patógeno causa na pele. “Hoje, a gente vê que a monkeypox acomete todo mundo – homem, mulher e criança”, esclarece Damaso.
O estigma, porém, já se espalhou. Em agosto, durante uma entrevista para o Flow Podcast, Jair Bolsonaro associou a doença à comunidade queer. Ele perguntou se o apresentador do programa, Igor 3K, tomaria a vacina contra a varíola dos macacos. Diante da resposta afirmativa, o presidente comentou, em tom cômico: “Eu tenho certeza que vai tomar… Tu não me engana! Tu não me engana!”
O infectologista Vinicius Borges, que cuida de F.C., costuma usar as redes sociais para difundir informações científicas sobre a saúde sexual da população LGBTQIA+. Quando os casos de monkeypox se alastraram, a página dele no Instagram recebeu inúmeras mensagens de pessoas com medo do surto. Parte dos que escreveram indagava, anonimamente, como cuidar das feridas geradas pela infecção. “Tudo isso poderia ter sido evitado se, desde o começo, as autoridades tivessem se preocupado em dar a devida atenção à doença”, afirma o infectologista.
Mal soube que o Ministério da Saúde não dispunha de tecovirimat, F.C. foi ao Instituto Emílio Ribas, hospital de referência para monkeypox e outros distúrbios infectocontagiosos em São Paulo. O pediatra queria checar se havia algum frasco do medicamento por lá. A farmacêutica olhou a receita com as sobrancelhas franzidas e disse que nunca tinha ouvido falar do antiviral. “Estavam despreparados para lidar com o meu caso”, lamenta F.C. Procurado pela piauí, o Emílio Ribas confirmou que não dispõe do tecovirimat na farmácia ambulatorial e explicou que o solicita ao Ministério da Saúde quando necessário.
Os únicos doze frascos do remédio que o Brasil recebeu até agora chegaram em 26 de agosto. O laboratório Siga Technologies, fabricante do medicamento, doou o lote via OMS. Sediada em Nova York, a empresa produz o tecovirimat desde 2018 para garantir que os Estados Unidos mantenham uma reserva de segurança contra a varíola comum. O país guarda 1,7 milhão de frascos do antiviral, mas mesmo lá as vítimas da monkeypox enfrentam dificuldade para obtê-los. A burocracia é semelhante à do Brasil: o médico deve assinar um requerimento de 27 páginas com detalhes sobre o quadro do paciente e aguardar que o pedido seja aprovado pelo governo.
A dificuldade de acesso deriva da falta de estudos clínicos a respeito de como o tecovirimat atua no corpo humano. Apesar de a eficácia da medicação já ter sido comprovada em testes com macacos, ainda não foram divulgadas informações confiáveis sobre a ação em pessoas. Dois ensaios clínicos estão em andamento. O resultado de um deles deve sair no início do ano que vem. “Até 2022, a testagem do remédio em humanos não era uma preocupação porque o vírus se disseminava pouco pelo mundo”, diz Damaso.
Em entrevista ao jornal The New York Times, a diretora do Departamento de Doenças Pandêmicas e Epidemiológicas da OMS, Sylvie Briand, afirmou que a instituição busca desburocratizar o acesso à droga. “Um paciente pode levar semanas e até meses para consegui-la. Estamos tentando diminuir esse tempo, mas não é fácil. Antes, precisamos ter certeza de que a medicação funciona com segurança.”
Até hoje, catorze brasileiros foram internados em unidades de terapia intensiva por causa da monkeypox, conforme nota enviada pelo governo federal à piauí. Outros seis manifestaram complicações oculares. Mais cinco desenvolveram proctite, um tipo de inflamação no reto, e três acusaram inflamação na uretra. Dos 28 pacientes com quadro crítico, doze receberam o tecovirimat. Os restantes, incluindo F.C., tiveram que procurar medidas paliativas para conter os estragos da doença.
Na noite de 27 de setembro, um amigo do pediatra embarcou para os Estados Unidos cheio de esperança. A viagem de São Paulo até Miami tinha uma única motivação: adquirir um colírio que pudesse reduzir os danos oculares de F.C. Pela internet, o doente descobriu uma farmácia na Flórida que vende certos remédios sob a apresentação de receitas médicas estrangeiras. Como não está enxergando direito e se sente inseguro para viajar, o pediatra aceitou a ajuda do amigo. O próprio F.C. bancou não só as passagens aéreas como os gastos com hotel.
O colírio custou 258 dólares (ou 645 reais). O frasco de 7,5 ml contém trifluridina, um antiviral que precisa ser guardado entre 2 e 8ºC. A substância ameniza a lesão ocular provocada pela monkeypox, mas não elimina o vírus. Daí a necessidade do tecovirimat.
O amigo retornou no último dia 30. Foi do aeroporto direto para o apartamento de F.C., que desembolsou 8.601,60 reais com todo o trâmite de importação. “Sei que o tratamento é demorado e exige ajustes a cada dois ou três dias. Tenho vivido entre a minha casa e o consultório da oftalmologista. São exames e mais exames…”, conta o pediatra. Além da medicação importada, ele usa outros três tipos de colírios, um gel ocular lubrificante e três remédios via oral. Nenhum dos medicamentos foi oferecido pelo governo brasileiro.
Faz um mês e meio que F.C. está afastado do trabalho, sem saber quando retornará. Na semana passada, a oftalmologista descobriu outra lesão no globo ocular dele, agora localizada no centro da córnea esquerda. O ferimento dificulta ainda mais a visão. “É como se cada olho enxergasse imagens diferentes”, disse F.C. numa mensagem por WhatsApp. “Espero que meu corpo responda à trifluridina e que as lesões regridam o quanto antes. Sigo com fé e otimista!”
*A piauí publica apenas as iniciais do pediatra por solicitação dele. O médico teme sofrer discriminação se revelar o nome todo.