Esta é uma ocasião muito especial para a Cozinha Transcendental. Nos imagine engalanados, os homens vestindo seus paletós em pele de cobra e as mulheres com seus longos de lurex com cauda, todos com os aventais engomados, tiaras e cartolas só para assistir à estreia de gala de nossa Setorista de Quinoa e Granola e receber seus convidados, os diretores de cinema Eduardo Escorel, nosso vizinho de blog, e o incomparável David Lynch.
O diretor de Eraserhead, Twin Peaks e Veludo Azul demonstrará em vídeo (partes I e II) como costuma preparar seu jantar predileto, Quinoa com Brócolis. Na sequência de cada uma das partes está a transcrição em português do que ele diz.
Eduardo Escorel reflete sobre as semelhanças entre fazer cinema e cozinhar, e nos prepara para encarar a cozinha misteriosa de David Lynch. Podem ir vestindo seus trajes mais bonitos com calma, que a gente espera para apagar as luzes e iniciar a sessão.
Com vocês, Eduardo Escorel:
Fazer cinema e cozinhar seguem procedimentos idênticos: escolha cuidadosa de ingredientes, seguida de combinação criteriosa em proporções adequadas. Há os temperos, naturalmente, além do ponto certo de fritura ou cozimento de doces, salgados e situações dramáticas. Não é à toa que cozinhar seja metáfora recorrente para cineastas. Billy Wilder se definia como "um padeiro" que tenta tornar o pão mais saboroso. Do mesmo modo, não terá sido por acaso que Buñuel e Carrière descreveram com tanto prazer em Meu Último Suspiro o que é preciso para “provocar e entreter um devaneio”. Trata-se, no caso, de uma bebida, mas poderia ser um filme. Os componentes podem ser escassos, apenas dois para fazer o dry martini. De vermute, bastam algumas gotas. Para os radicais, seria suficiente que “um raio de sol atravessasse uma garrafa de Noilly-Prat antes de atingir o copo de gim.”
Dar usos múltiplos a um mesmo ingrediente foi, e ainda é, considerado uma das propriedades fundamentais da montagem cinematográfica. Há porém quem suspeite que essa manipulação possa causar dissabores, assim como a combinação arbitrária de ingredientes na cozinha pode resultar pouco prazeroso ao paladar.
No final da década de 90, em Los Angeles, ouvi como sendo verdadeiro que David Lynch fez uma pesquisa para saber a que horas era servido o melhor milk-shake de chocolate numa hamburgueria que fica perto dos estúdios da Warner. Todo dia, durante duas semanas, ele teria tomado um milk-shake com uma hora de diferença. Tomou, portanto, catorze milk-shakes, um em cada hora de funcionamento do estabelecimento. As variações de gosto se explicavam pela temperatura dos ingredientes, as pequenas diferenças de dosagem, dependendo do atendente, e a ordem em que eram colocadas no copo do liquidificador. Concluiu que o melhor milk-shake era servido às três da tarde. Há dúvidas quanto à experiência ter ou não provocado enjoo e se há alguma relação com os filmes que fez desde então.
Assista ao vídeo de David Lynch e abaixo veja a tradução integral das falas dele em português:
Vamos cozinhar quinoa. Começaremos no balcão e eu explicarei passo a passo. Quinoa é algo que gosto de comer no jantar sempre que posso.
Comece com uma panela. Essa panela é incrível, super pesada e revestida em cobre, é uma ótima panela. Agora vou enchê-la com água da pia. Coloco por volta de três centímetros de água, mais ou menos. Deixo a panela no fogão e acendo o fogo. Uma flama quente e gostosa. Agora pego o sal. Este é um sal marinho. Coloco esse tanto lá. Depois vou preparar a quinoa. Isto é uma saco de quinoa. Dizem que a quinoa, não tenho certeza se é verdade, é o único grão que é uma proteína perfeita. Agora vem cá e veja o quanto de quinoa eu coloco nesse copo. Coloquei um pouco menos de meio copo. Parece areia, essa quinoa. Esses grãozinhos estão bem pequenos, mas vão inflar. Deixo esse copo de lado porque ainda não vou despejar a quinoa. Vai ficar aqui, esperando a água ferver. Agora fecho o saco pra que a quinoa continue fresca. Aqui estou abrindo, para mais tarde, um cubo de caldo de legumes. Vou deixar aqui para preparar para mais tarde. Abro a gaveta e…. pego uma faca pequena. Desfaço o cubo em pedaços pequenos e reservo. Ele vai ficar feliz em esperar aqui. A água está quase fervendo. Olho pro relógio, que marca 19h34. Agora adiciono a quinoa. Aqui vai ela junto com a água salgada. Agora eu pego a tampa com um papel toalha que deixei dobrado para mais tarde porque a tampa esquenta muito, é inacreditável.
Agora vou para geladeira e pego um saco fresco de brócolis orgânico. Vou abrir e pegar, mas não para agora, para mais tarde.
Olhe o relógio: 19h35, conte 17 minutos. 45, 55, menos três dá 52. Em oito minutos, 19h43, colocaremos o brócolis na panela. Já que estou cozinhando apenas para uma pessoa, esse é o tanto de brócolis que usarei (três flores). O resto eu guardo na geladeira.
Agora baixo o fogo, bem fraquinho. Deixe cozinhar gentilmente, abaixo do ponto de ebulição.
O próximo passo é pegar uma cumbuca para depois. A cumbuca fica aqui e vai precisar de uma colher.
Aqui está uma taça de vinho de cristal fino. Quem me deu foi Agnes e Maya de Lodz, na Polônia. Vou enchê-la de vinho, porque é isso que você faz quando cozinha quinoa. Para ganhar tempo, tome vinho. Saúde!
Agora é a hora em que eu normalmente sento lá fora. Devo fazer isso? É o que eu faço normalmente.
Isso aqui é apenas sentar fumando um cigarro, pensando em todas as pequenas quinoas cozinhando na panela. Estamos esperando mais dois minutos pra adicionar o brócolis. Contarei a história em que fui de Atenas, na Grécia, de volta para Paris. Mas essa história acontece depois que deixei a Grécia, cheguei no que era então a Iugoslávia. Era noite e um motor movido a carvão puxava o trem para dentro da Iugoslávia. E voltarei a essa história depois que colocar o brócolis.
Então aqui estamos, essa é a panela cuja tampa está muito quente. Abra e dê uma olhada na bonita quinoa cozinhando nela. Cozinha melhor com a tampa. Lá vai o brócolis, mas não colocamos o caldo de legumes até que acabe de cozinhar. Acabará às 19h53.
Agora voltamos para fora. De volta no tempo, 1965, durante o verão, talvez início de agosto. O trem sai da Grécia para Iugoslávia de noite. E o trem passou por uma paisagem árida, mas não dava para ver nada porque estava muito escuro. Era uma noite sem lua. Paisagem árida na Iugoslávia onde estávamos à aquela altura. De repente o trem desacelera e para. E, de alguma forma, espalhou-se a mensagem que podíamos descer do trem para comprar bebidas. Mas não havia estação, você descia as escadas de metal do trem e cruzava poeira, poeira que soprava, poeira que enchia o ar. De alguma forma ela era iluminada pelas luzes interiores do trem, nessa paisagem árida e empoeirada. E lá, através da poeira, vimos um pequeno estande de lona e madeira, algumas lâmpadas pequenas ao redor. E conforme fomos nos aproximando vimos garrafas amarelas, verdes. As garrafas eram transparentes, mas o líquido dentro era verde, amarelo, vermelho, violeta. E era água com açúcar, não estavam geladas. Estavam exatamente na temperatura ambiente. E por uma quantidade de dinheiro irrisória, você podia comprar uma garrafa dessa água com açúcar. Então dei…
(fim da primeira parte da receita)
(segunda parte)
…ao homem naquela barraca pequena com mariposas girando e voando como sapos. Eram mariposas-sapo que saíam da terra e voavam até o estande. A poeira soprava e fazia um som de vento estranho, misterioso. Peguei uma minúscula moeda de cobre que eu tinha ganhado em algum lugar e dei ao homem. Dei a moeda para o homem e ele me deu uma garrafa de água açucarada, e agora já não me lembro a cor, violeta, talvez. Peguei a garrafa e também recebi dinheiro em nota de papel de doze por seis centímetros. Era a nota mais bonita, de um design complexo, dourada, verde, azul, vermelha. Ganhei uma nota de dinheiro e a garrafa, só de ter dado uma pequena moeda de cobre. Voltei para o trem e depois de um tempinho soubemos que o trem estava sendo abastecido de água, por isso que a gente tinha parado. O trem começa a partir, todos a bordo com suas águas açucaradas e acenamos para aquela barraquinha empoeirada com o homem da água com açúcar. Partimos. E alguma hora, não sei quanto tempo levou para chegarmos a Veneza. Jack conheceu uma menina no trem, não sei qual era a nacionalidade dela, mas Jack e essa menina tornaram-se amigos íntimos e, conversando com ela (Jack me apresentou a ela), descobri que ela nunca tinha tomado uma Coca-Cola na vida. Coca-Cola não era comercializada na Iugoslávia. Eu falei: “Você está brincando comigo? Quando chegarmos a Veneza, comprarei uma Coca-Cola bem gelada pra você. E eu quero te ver tomando, isso vai ser incrível.” Ela já tinha ouvido falar sobre a Coca-Cola. Então chegamos a Veneza e o trem entra numa estação e eu saio pra comprar Cocas pro Jack, pra nova amiga dele e pra mim. Eu saio, tem um cara num estande vendendo Coca-Cola. Eu comprei seis Cocas e dei para o cara aquela nota de dinheiro que ganhei do homem da barraca. O vendedor olhou e começou a colocar moedas na minha mão. Moedas do tamanho das moedas americanas de 25 centavos de dólar. E eu fiquei olhando pras minhas mãos pensando no milagre que isso é. E o homem continuava enchendo a minha mão com mais e mais moedas, ao ponto que eu tive que juntar as duas mãos. E ele continuava enchendo as minhas mãos, e no segundo em que olhei pra ele, ele parou. Eu tive dificuldade em colocar as moedas no bolso. Eram tantas moedas de prata. Guardei as moedas, peguei as Cocas e voltei pro trem. Entreguei a Coca gostosa e gelada pra amiga do Jack e ela deu um gole enorme. A Coca explodiu pelas narinas dela. Mas ela adorou a Coca-Cola, depois que se acostumou com o gás.
“Que horas são?” 19h50. Ok. Me avisa quando for 19h52.
“Pshhh”, esse foi o som que fez a Coca saindo pelo nariz dela.
“Que horas são?” 19h51.
Alfredo construiu todas essas janelas a mão. “Que horas são?” 19h52.
Agora vamos entrar e terminaremos a receita. Sai a tampa e entra o caldo de legumes. E misturamos até toda a água ferver. Toda a água secou. Vamos desligar o fogo. O caldo tem que derreter todo aqui. Agora que colocamos o caldo, dá para ver também o brócolis bem cozido, a quinoa já toda inchada e cozinhada e o caldo misturado. Agora pegamos a cumbuca e chegamos perto da cumbuca e usando isso aqui, colocamos a quinoa na cumbuca. Aí vamos rápido para a pia, porque a quinoa pode grudar. Enchemos a panela com sabão e água. Aí pegamos a tampa da panela e lavamos também na água quente. Limpamos bem porque a quinoa realmente gruda.
Agora voltamos, colocamos a panela aqui. Agora a segunda parte é o shoyu. Esguichamos um pouco do molho shoyu e um pouco de azeite de oliva extra-virgem. E aqui está uma fantástica cumbuca de quinoa, brócolis, caldo de legumes, sal, shoyu e azeite.
Quinoa com Brócolis à moda de David Lynch
(medidas de uma porção para apetites modestos)
• Encha uma panela média com uns três centímetros de água.
• Coloque a panela com água sobre flama bonita e quente. Adicione sal.
• Olhe para a quinoa, parece areia. Os grãos estão pequeninhos, mas vão crescer.
• Abra 1 cubo de caldo de legumes. Despedace com uma faca pequena. Deixe esperando, ele ficará feliz em esperar.
• Quando a água ferver, adicione a quinoa e tampe a panela. Reduza o fogo e deixe cozinhar por oito minutos.
• Nesse meio tempo, pegue três flores de brócolis na geladeira e deixe separado. Depois sirva uma taça de cristal de vinho tinto – ou semelhante àquela dada por Agnes e Maya, de ?ód?, Polônia. “É isso o que se faz quando se cozinha quinoa. Vá para fora, sente-se, fume e pense nas pequenas quinoas cozinhando na panela.”
• Adicione o brócolis e deixe cozinhar por mais sete minutos.
• Enquanto espera, volte lá pra fora e conte a história sobre o trem movido a carvão que parou numa Iugoslávia árida, sem lua e empoeirada, em 1965. A história sobre mariposas-sapo e a pequena moeda de cobre que se transformou numa garrafa violeta de água açucarada, uma linda nota de dinheiro, seis latas de Coca e grandes punhados de moedas de prata. (Ou substitua por alguma história surrealista, a gosto). Comente as janelas (ou substitua por algum comentário curto, a gosto).
• Desligue o fogo, adicione o caldo de legumes e misture tudo com a ponta da faca usada pra despedaçar o cubo do caldo. (Recomendamos enfaticamente substituir a faca por uma colher de pau, pois não altera o resultado e preserva a integridade da panela e da faca.)
• Ponha a quinoa na cumbuca usando uma colher. Espirre um pouco de shoyu e azeite de oliva extra-virgem. Bom apetite!
Fundo musical recomendado para preparar a receita: