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    Em cinco anos, a indústria da maconha nos EUA será comparável a da cerveja artesanal. Em dez, a de vinhos. Isso se a legislação não embaçar. FOTO: ETHAN MILLER_ GETTY IMAGES/AFP

questões do barato

Lucrativa como chocolate

Ex-investidores de Wall Street e os herdeiros de Bob Marley disputam os bilhões da cannabis legalizada nos Estados Unidos

Denis Russo Burgierman | 24 ago 2017_19h43
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Na madrugada de 9 de novembro de 2016, o mundo ficou tão chocado – com o fato de que os Estados Unidos tinham acabado de eleger Donald Trump presidente –, que muita gente nem se deu conta de que um outro evento histórico monumental tinha acabado de acontecer. Aquela mesma eleição que instalou um topete alaranjado na Casa Branca decretou que a maconha – violentamente proibida por quase um século – deixaria o grupo das drogas perigosas (o inimigo público número um dos Estados Unidos, como declarou o ex-presidente Richard Nixon) e voltaria à legalidade para se tornar uma indústria legal (e bilionária) no país mais rico do mundo.

O terremoto Trump fez o mundo esquecer que os eleitores americanos não votaram só para escolher o sucessor de Barack Obama. Vários estados foram às urnas, também, em plebiscitos para decidir se transformavam em lei as iniciativas de cidadãos para legalizar a maconha – uma peculiaridade da democracia americana, que permite autonomia dos estados para criar legislação própria; a maioria dos estados deixa os eleitores escreverem as próprias leis.

Se a vitória de Trump foi apertada a ponto de ele virar presidente mesmo com menos votos que sua adversária, a da maconha foi de lavada. Dos nove estados com medidas para legalizar, oito decidiram pelo sim – quatro para uso medicinal e quatro para uso adulto, para qualquer fim. Um dos que legalizaram o uso foi a Califórnia, onde vivem 12% da população dos Estados Unidos. A Califórnia sozinha – se fosse um país, teria a sexta maior economia do mundo – prenuncia que a indústria da maconha será gigantesca, bilionária.

Era esperado que os liberais californianos aprovassem a maconha. O mais notável da votação de 9 de novembro, no entanto, foi a vitória da maconha em estados conservadores, inclusive muitos que preferiram Trump a Hillary – como Arkansas, Dakota do Norte e Montana. Na Flórida, que elegeu Trump, iniciativas populares só viram lei se receberem 60% dos votos, algo dificílimo. Pois a maconha medicinal foi legalizada por lá com inacreditáveis 71% dos votos. Oitenta e oito por cento dos americanos são a favor da legalização da maconha medicinal, 60% aprovam que o uso adulto seja legal.

“Foi talvez o dia mais significativo da história milenar do uso de maconha pelo homem”, relembrou Troy Dayton, ativista pela legalização e CEO da Arcview, uma organização especializada no mercado de maconha. “Foi o dia da virada – uma era acabou, e outra está começando.”

 

Antes mesmo de as mudanças acontecerem em todos os estados – a Califórnia só começa as vendas para adultos em 2018 –, a maconha legalizada já é a indústria que mais cresce no mundo de acordo com a Arcview. Em 2016, ela movimentou 6,7 bilhões de dólares, 34% a mais do que os 5 bilhões do ano anterior. Mas o maior atrativo não é o que já cresceu: é o que falta crescer.

No ano que vem, com a legalização não só na Califórnia, mas também no Canadá – cujo primeiro-ministro, Justin Trudeau, anunciou a legalização –, a indústria vai mudar de patamar, com o mercado triplicando de uma hora para a outra.

Um relatório recente elaborado pelo time de pesquisadores da Arcview profetizou: “Em 2021, a indústria da cannabis terá um tamanho pouco acima dos 22 bilhões de dólares, comparável ao da cerveja artesanal ou ao mercado total de chocolate. Em 2026, com 44 bilhões de dólares, irá eclipsar toda a indústria de vinhos e se comparar ao mercado de orgânicos.” Profecias de uma década inteira com índices chineses de crescimento – perto de 30% ao ano.

A equipe da Arcview jura que a estimativa é conservadora. “Sabemos o tamanho que o mercado terá porque ele já existe – só que está nas mãos de criminosos”, disse Dayton. “Vimos, por exemplo, no Colorado, que apenas dois anos depois da legalização, 73% do mercado já mudou de mãos, indo para empresas legais – só sobrou 27% para os traficantes. Tudo indica que algo semelhante vai começar a acontecer em boa parte do país, se a regulação não for excessiva.”

Portanto, não vão faltar oportunidades para fazer dinheiro legalmente com maconha – a julgar pelas análises, dezenas de bilhões de dólares em breve irão fluir por esse mercado, e estão à espera de empreendedores que os enfiem no bolso. Não faltam, tampouco, complicações.

O setor é altamente complexo – quem quer atuar nele precisa lidar com a volatilidade de um clima político instável, mais ainda nos tempos imprevisíveis de Trump, com leis que variam a cada estado, preços em queda acelerada e o inconveniente de comercializar um produto que, de acordo com a lei federal dos Estados Unidos, é proibido criminalmente e não tem nenhum valor medicinal. Há uma quantidade enorme de restrições para os empresários.

Eles só podem atuar num único estado, já que as leis federais caracterizam qualquer transporte interestadual como tráfico. E têm dificuldades até de abrir conta no banco, porque a maioria das grandes instituições financeiras prefere evitar o excesso de regulação e tradicionalmente recusa clientes dessa indústria.

Por isso, para candidatos a empreendedores e investidores que querem um teco desses bilhões, um bom ponto de partida para entender onde estão as oportunidades é adquirir, por salgados 597 dólares, o relatório O Estado dos Mercados Legais de Cannabis, que a Arcview produziu, cheio de gráficos e de informações detalhadas sobre as regras de cada estado. A papelada teve ajuda de um time de meia dúzia de analistas financeiros.

Na página oito do relatório, a Arcview publicou um anúncio publicitário de página inteira no qual faz uma apresentação: “Maconha, conheça o Capital”. Em seguida, a frase: “a proibição está desmoronando. Invista no que vem depois”.

Além de fazer pesquisas de mercado, a Arcview mantém uma plataforma para empresários da maconha encontrar investidores dispostos a financiá-los. “Somos a principal fonte do fluxo de capital para investimento na indústria”, disse Dayton. A organização é sustentada por 600 investidores cadastrados, que já colocaram mais de 140 milhões de dólares em 160 empresas diferentes que atuam no mercado de cannabis. “A cada semana, alguém investe dois milhões de dólares dentro da plataforma. Nosso trabalho é apresentar gente que ama a planta para quem ama negócios, e vice-versa.”

Chris Leavy definitivamente está mais para o segundo grupo. Ele fez carreira no mercado financeiro: foi executivo-chefe de investimentos da BlackRock, uma gigante de Wall Street que administra ações de boa parte da economia global. “Eu vivia para encontrar negócios subvalorizados, aí investir e fazer dinheiro”, disse, por telefone.

Depois que juntou dinheiro suficiente, Leavy mudou-se de Nova York para o estado vizinho, Pensilvânia, “para pagar menos impostos”, disse. “Ano passado, meu estado legalizou o uso medicinal da maconha e comecei a ouvir as notícias de que o Canadá estava prestes a legalizar. Um dia, conversando com outros pais na escola dos nossos filhos, me dei conta de que tem um tremendo potencial de crescimento na indústria. Foi aí que resolvi entrar.”

Leavy não tinha interesse particular em maconha. “Nunca fui um consumidor regular, embora também não tenha nenhuma questão contra quem é. O que me atraiu foi o negócio mesmo – eu sei identificar uma boa oportunidade.” Segundo ele, a mudança na lei em cada vez mais estados americanos e a grande quantidade de restrições que reduzem a concorrência fazem dessa indústria uma oportunidade incomparável. Com sua experiência em Wall Street, Leavy foi comandar a área de investimentos da MedMen, uma empresa californiana que, nos últimos sete anos, vem obtendo licenças e montando operações de cultivo e venda de maconha medicinal ou recreativa em Nova York, Califórnia e Nevada.

Não tem sido difícil para ele encontrar gente disposta a botar dinheiro na maconha. Sua equipe já conseguiu convencer cerca de 100 investidores a aplicar 92 milhões de dólares no projeto, à espera de retornos gordos por muitos anos. “Chegando cedo no mercado, conseguiremos nos estabelecer nos melhores lugares das cidades, o que é uma grande vantagem, já que há muitas limitações quanto a zoneamento.”

As leis são tremendamente restritivas: o estado de Nova York, por exemplo, por enquanto só emitiu dez licenças para dispensários medicinais. Ou seja, a MedMen é uma das dez únicas empresas autorizadas a vender maconha legalmente no estado inteiro, um mercado potencial de 20 milhões de habitantes, fora os turistas. “Isso é ótimo para os nossos investidores. Com poucos concorrentes, teremos mais tempo para construir nossa marca”, disse Leavy. “Queremos que, daqui a alguns anos, quando alguém pensar em maconha, o nome MedMen venha à cabeça.”

Mas a MedMen terá que enfrentar uma disputa dura por espaço na mente dos usuários de maconha. Alguns nomes bem familiares para eles já entraram na briga pelos bilhões que o futuro reserva. Em 2014, os herdeiros de Bob Marley se associaram a uma equipe de engravatados de cabelo bem aparado e rosto bem barbeado (a Privateer, uma holding de marcas canábicas), e juntos lançaram a Marley Natural, uma marca de maconha.

Produtos da marca – como a flor da cannabis acondicionada em potes transparentes para fazer baseados, além de óleos, extratos e acessórios com estilo entre o chique e o rústico – já estão à venda na Califórnia. Mas nem só fãs de reggae fumam maconha.

A Marley Natural terá concorrentes dos mais diversos: por exemplo, a Leafs by Snoop (do rapper Snoop Dogg) e a Willie’s Reserve (do cantor de country Willie Nelson), todas elas tentando capturar uma fatia do mercado com a ajuda de ídolos que há décadas têm sua imagem ligada à maconha.

É essa a lógica da indústria da cannabis hoje: empresas novas se posicionando com marcas, licenças e infraestrutura, tentando abocanhar uma fatia num mercado que tudo indica vai crescer mais que qualquer outro na próxima década.

 

Mas quem tentar comprar ações de alguma dessas empresas na Bolsa de Nova York, a maior do mundo, ou na Nasdaq, a mais associada com indústrias inovadoras, vai bater com a cara na porta. Por causa da proibição federal, papéis de empresas que comercializam maconha ainda não podem ser oferecidas na bolsa americana.

Com tanta demanda e tão pouca oferta, sobra dinheiro para empresas que nem vendem maconha, mas estão associadas à indústria. O principal exemplo é a Scotts Miracle-Gro, uma venerável empresa de produtos de jardinagem com 150 anos de tradição e que foi adotada pelos cultivadores ilegais de maconha nos anos 60. Recentemente, ela começou a desenvolver produtos para eles. Ano passado, com a expectativa da legalização, suas ações valorizaram mais de 50%.

Empresas que vendem embalagens para a indústria, ou instalam sistemas digitais de vendas, ou mantêm redes sociais para usuários, ou que comercializam acessórios para maconheiros – como papel para enrolar – também vêm se capitalizando enquanto o mercado público de ações está fechado para quem supre a erva.

Sem ações no pregão, resta aos produtores de maconha legal dos Estados Unidos irem atrás do capital de investidores de risco – e eles estão tendo sucesso. A indústria já conseguiu captar mais de 2 bilhões de dólares nos últimos anos, geralmente de indivíduos ricos – investidores institucionais ainda têm uma certa aversão pela zona legal cinzenta da indústria. Um exemplo é o Founders Fund, o fundo de capital de risco criado pelo megaempreendedor Peter Thiel, criador do PayPal.

O Founders orgulha-se de investir em empresas nascentes com potencial para fazer grandes transformações no mundo – esteve entre os investidores iniciais do Facebook, da SpaceX e do airbnb. Em 2015, investiu múltiplos milhões (o valor preciso não foi divulgado) na Privateer, a holding que detém a marca Marley Natural.

 

A situação do mercado é bem diferente ao norte da fronteira, no Canadá. Lá o governo do primeiro-ministro Trudeau se prepara para legalizar a maconha recreativa nacionalmente no ano que vem – ao contrário do que vem acontecendo nos Estados Unidos, onde a legalização vem ocorrendo aos poucos, estado por estado. Com a legalização completa, o Canadá terá maior segurança jurídica e, por isso, há algumas empresas produtoras de maconha se antecipando e vendendo ações na Bolsa de Toronto.

A principal delas é a Canopy Growth, uma gigante canábica canadense, cujo valor de mercado já é avaliado acima de 1 bilhão de dólares, o que faz dela a primeira empresa do setor no mundo a romper esse patamar. A Canopy produz e comercializa maconha para uso medicinal no Canadá e também exporta para a Alemanha. Com o otimismo trazido pela iminência da legalização para uso adulto, no Canadá, e uma série de aquisições de outras marcas, suas ações triplicaram de preço ao longo de 2016, um ano fabuloso para todas as empresas canábicas da América do Norte com ações na Bolsa.

Já 2017 começou um pouco mais instável, com grandes quedas nas ações, depois que Trump, que já havia se declarado favorável à legalização da maconha, mas que é absolutamente imprevisível, nomeou como advogado-geral da nação o notório proibicionista Jeff Sessions. Sessions já deixou bem clara sua opinião sobre a droga: “gente boa não fuma maconha”, declarou uma vez, numa audiência no Congresso.

Como chefe do departamento de Justiça, cabe a ele comandar o DEA, a polícia antidrogas do país, que durante a era Obama deixou em paz os negócios canábicos que cumprissem as leis estaduais, mesmo que infringissem as federais. No início do ano, havia o receio de que ele poderia reverter os avanços da indústria.

Mas, passados sete meses do começo do governo Trump, tudo indica que o risco é pequeno. Com o sucesso da legalização em alguns estados, os políticos estão cada vez menos dispostos a brigar contra o mercado. E não só porque seria impopular com eleitores dos dois partidos, mas também por uma questão prática: só o Colorado arrecadou meio bilhão em impostos com o novo setor.

Embora a legalização federal ainda pareça distante, surgiram, nos últimos anos, mecanismos que protegem a nascente indústria. Por exemplo, há uma emenda à lei de orçamento do departamento de Justiça que proíbe o DEA de gastar dinheiro do contribuinte reprimindo negócios que estão de acordo com as leis estaduais. Sessions não pode fazer muito, mesmo se quiser.

A lei é de coautoria do deputado Dana Rohrabacher, um republicano muito conservador, aliado de primeira hora de Trump, que não acredita nas mudanças climáticas e se opõe à imigração. Apesar do conservadorismo, Rohrabacher defende ardentemente o direito de um setor da economia pagar impostos e existir dentro da lei. Cada vez mais, essa é uma posição apoiada pela maioria da população, dos dois lados do espectro político. A essa altura, ninguém mais quer abrir mão dessas receitas.

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