“Tente passar pelo que estou passando / Tente apagar esse seu novo engano / Tente me amar porque estou te amando / Baby, te amo, nem sei se te amo”
É assim que começa Pérola Negra, espantosa canção de amor, no dizer de Tárik de Souza, canção que confessa a incerteza e o dilema deste sentimento. Quando Torquato Neto e Waly Salomão ouviram Luiz Melodia cantar estes versos, foram logo mostrar a canção para Gal Costa, que a gravou em seguida em seu LP Gal a todo vapor (1971). Foi desta forma inquietante e sincera que o Brasil conheceu Pérola Negra. Luiz Melodia, cantor e compositor apesar de ter nascido no morro do Estácio, berço do samba carioca e de Ismael Silva, era bamba, mas não era sambista.
Pérola Negra, com Luís Melodia
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Pérola Negra é uma confissão espantosa de amor e dúvida, palco de sentimentos conflitantes. “Baby, te amo, nem sei se te amo”; dramáticos, “Arranje algum sangue, escreva num pano”; exaltados e incertos, a inquietude vem de não se saber mais o que é o amor “te amo, nem sei se te amo”; ou obsessivos, ”Escreva num quadro em palavras gigantes / Pérola Negra, te amo, te amo.”
Obsessão, franqueza, drama, dúvida estão no centro das transformações existenciais por que passava a geração de 70. A liberação sexual alterou o paradigma da relação amorosa, trazendo um novo olhar sobre as ligações entre amor e sexo, prazer e afeto, e o amor romântico, guardando suas características essenciais – o desejo de ser correspondido, a obsessão pelo ser amado, a instabilidade da paixão –, vai ganhar agora um aspecto mais carnal, mais sanguíneo, que se revela na presença do sangue, usado na canção como tinta para escrever uma declaração de amor. A gravação de Melodia é mais blues, enquanto que a de Gal, com a presença da incrível guitarra de Lanny Gordon dialogando com o canto, é mais rock and roll, evocando a presença de Janis Joplin em Try (just a little bit harder) , seu canto rasgado.
Janis Joplin – Try (just a little bit harder)
Pérola Negra traz em seu título o conflito que vai tecer o tecido nervoso, pulsante e poético da canção, já que pérola está simbolicamente ligada à pureza, ao recato (sua beleza protegida dentro de uma concha) e à cor clara (apesar de haver pérolas negras em alguns lugares do mundo, as brancas são mais comuns). Então, quando ele cria esta imagem “pérola-negra”, esta expressão já cria um choque: claro-escuro, leve-denso.
Luiz Melodia nasceu no Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1951. Seu pai, tocador de viola em bares da redondeza, era como ele disse, um “musiquim”, um amador de música. Melodia descobriu a música ao ver o pai tocando em casa: “fui pegando a viola dele, tirando uns acordes, observando”. Estudou um pouco, até a sexta série (da sua época), mas para ele “escola é abertura de cuca, e só”. Nem é preciso falar que era músico autodidata. Ouviu muito Louis Armstrong e Elvis Presley, jazz, blues, balada, rock. Uma vez, quando começou a cantar no show A Fina Flor do Samba, as pessoas estranharam: “Toquei as músicas Estácio, Eu e Você e Farrapo Humano, entre o samba-canção e o blues. Notei, assim, na platéia, um certo clima de surpresa. Ali só se apresentava sambista, só se tocava samba. Mas logo o pessoal entendeu e aplaudiu.”
Maria Bethânia gravou Estácio, Holly Estácio, em 1972 , no LP Drama – anjo exterminado. Sucesso. Somado à popularidade atingida pelo disco de Gal, isso abriu-alas para que Melodia gravasse, em 1973, seu primeiro LP, Pérola Negra, onde canta suas composições. Estácio, Holly Estácio foi feita para uma namorada, ainda adolescente. É um samba-canção que tem como tema um amor que não deu certo tem como palco o Largo do Estácio. Começa desta forma bela e dramática: “Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio”. Ninguém a esqueceria.
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De seu primeiro LP também faz parte Magrelinha e Farrapo Humano, (gravada depois por Jards Macalé). As duas primeiras são blues e Estácio, eu e você, um samba – choro:
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Sobre as letras de suas músicas, Melodia explica que elas não visam explicar nada, mas sugerem muitas coisas: “As pessoas têm que estar abertas para entender os toques. Não é assim, eu pisei numa pedra e aí nasceu esta frase. É um toque ingênuo, uma coisa poética, das vivências que eu observei.” Daí as frases cortantes, que se unem numa sintaxe própria pelo fio da emoção e do choque; as metáforas carregadas de sentimento – “farrapo humano” – e ambiguidade – “peregrino sábio dos enganos” – e uma sintaxe sensível que indica a presença do blues na alma e nas canções de Melodia. Como no blues, as letras de Melodia não têm uma narrativa linear. Elas exprimem através de fortes imagens, metáforas, frases cortantes, flashes e fragmentos os sentimentos do poeta diante do mundo, de si e do amor, como a cidade com seus anúncios luminosos que ele canta em Onde o sol bate e se firma (1978), sua poética, letreiros luminosos da alma.
Onde o sol bate e se firma
Mas não só do blues. Como dizem Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, Melodia faz uma música diferente “que reflete influências de blues, rock, soul e até samba-canção, de um universo habitado por Billie Holiday, B.B. King, o tecladista e arranjador Taj-Mahal, os Beatles, Jorge Ben e Maria Bethânia, artistas que ele curte e admira. Um pouco disso tudo, misturado à sua maneira, deu composições como Pérola Negra…” Acrescento a isso a presença do choro também (Estácio, eu e você, Fadas)
Em 1975, Melodia apresenta no Festival Abertura Ébano, “o novo peregrino sábio dos enganos”, com letra instigante e sintaxe fragmentária, como é de seu estilo: “o couro que me cobre a carne não tem planos / a sombra da neurose te persegue há tantos anos”, são frases que provocam, sugerem associações, e têm sentido impreciso. O júri não entendeu, desclassificou. O publicou gostou e aplaudiu.
Em 1976, sua música Juventude transviada faz muito sucesso ao ser trilha da novela Pecado Capital e é gravada no LP Maravilhas contemporâneas. “O título quer dizer que o disco reúne todas as maravilhas contemporâneas, jazz, rock, samba-canção, soul…”, explica Luiz
Juventude transviada
Juventude Transviada também é uma canção com versos soltos, sem preocupação com a lógica e texto enigmático. Neste LP ele gravou Congênito. Gosto demais desta música. Nela o poeta revela seu dilema com a palavra e o mundo do consumo e do entretenimento: “Se a gente falasse menos / Talvez compreendesse mais / Teatro, boite, cinema / Qualquer prazer não satisfaz / Palavra, figura de espanto quanto / na terra tento descansar”, “Mas o tudo que se tem não representa nada / o tudo que se tem não representa tudo”.
Vou me limitar a falar sobre as músicas presentes nos seus três primeiros LPs. Fazem parte desta trilogia: Pérola Negra (1971), Maravilhas Contemporâneas (1976) e Mico de Circo (1978).
Luiz Melodia abre o LP Mico de Circo com a emblemática canção de Zé Kéti, A Voz do Morro. Pois é, as pessoas comentavam o fato de Luiz ser do morro e não ser sambista e ele abre seu terceiro disco desta forma provocante, como a afirmar sua identidade com o samba, sua origem, sem no entanto abrir mão do universo pop, afirmando uma identidade plural, o samba, a música norte americana e a latina.
Em Onde o sol bate e se firma Melodia é o poeta da cidade, andando sem rumo entre a multidão. “Os transeuntes me agitam / me perco entre a multidão”, cantando a alucinação da cidade moderna, “e vejo através das lentes negras / lindo seu corpo, lindo”, “giro a cidade sem juízo“, procurando o rosto de seu amor perdido – “Vejo vitrines, vejo boutiques / Só não vejo quem eu quis”. Cidade moderna, solidão na multidão, não sei se Melodia conhece Baudelaire ou não, provavelmente não, mas não posso deixar de pensar no poeta de Flores do Mal e seu possível-impossível amor, perdido após um breve olhar, no poema A uma passante. A diferença é que Baudelaire viu alguém que poderia ser ou não ser seu amor, mas que foi tragado pela multidão, enquanto Melodia está sendo tragado por ela e não consegue ver seu amor, procura seu rosto mas só vê rostos estranhos, ele já a viu, perdeu-a, apesar de ter o nome da amada em sua blusa.
Onde o sol bate e se firma
Presente cotidiano foi composta especialmente para Gal Costa, que a gravou em 1973 no seu LP Índia. Melodia só a gravaria em 1978, em Mico de Circo.
Presente cotidiano – Gal Costa – Globo – Gente Especial 1973
Neste disco também está Giros de sonho, Falando de pobreza (de Tureko) e Fadas, que viria a se tornar um grande sucesso.
Giros de sonho – Luiz Melodia
Falando de pobreza – Tureko, com Luiz Melodia
Não bastasse a beleza inconfundível de suas canções, a voz de Luiz Melodia é uma das mais belas da música popular brasileira, timbre único, aveludado com aquele vibrato metálico que o coloca na linha direta de grandes cantores como Jamelão. Luiz Melodia está aí, cantando, gravando, lotando os teatros do Brasil com suas músicas, que agora são clássicos. Seu timbre e seu jeito original de compor coloriram e seguem colorindo nossa música com outros tons, como o de sua bela pérola que é negra.