Entrar no hotel Hilton da Rua 54, em pleno Centro de Manhattan, parecia missão impossível na tarde de segunda-feira. Chegar ao local só era viável a pé. Saídas do metrô foram bloqueadas e o trânsito na cidade estava impraticável em razão das diversas ruas fechadas devido à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e da Semana do Clima. Uma vez dentro do hotel, cada convidado era submetido a uma triagem rigorosa. Seus pertences eram farejados por cachorros. Depois, seguranças verificavam tudo minuciosamente: abriam carteiras, ligavam notebooks, celulares e vasculhavam pacotes de castanhas. Isso fora a verificação corporal. Passar pela saga permitia ingressar no evento da Fundação Clinton, o Clinton Global Initiative.
Com tantos poderosos no radar num curto espaço de tempo, entidades se empenharam em capitalizar as presenças ilustres em seus eventos. A Fundação Clinton é uma das mais ativas. Há mais de dez anos organiza o evento para premiar empresas e pessoas que, segundo a avaliação da entidade, estão fazendo boas coisas nos Estados Unidos e no mundo. O presidente Lula foi convidado para receber o prêmio Clinton Global Citizen Award, que já premiou desde a ativista Malala Yousafzai até o empresário e ex-prefeito Michael Bloomberg. Seria o convidado de honra da tarde, depois da primeira-dama Jill Biden, que compareceria ao evento um pouco antes para um debate com Chelsea Clinton (filha de Bill) e a médica e pesquisadora Valerie Montgomery Rice sobre a saúde da mulher. Não estava previsto que Jill recebesse qualquer prêmio.
Ao final do debate, que durou pouco mais de meia hora, o ex-presidente Bill Clinton surgiu no palco, acompanhado da ex-senadora Hillary Clinton, para agradecer a presença da primeira-dama. Poucos minutos depois, ao som de um hino de fanfarra, houve uma aparição surpresa: o presidente Joe Biden entrou, o que explicava os cachorros e todo o restante da segurança ostensiva. O presidente americano discursou brevemente agradecendo à família Clinton, em especial Hillary, por defendê-lo publicamente. E disse que sua aparição era uma “armadilha” de sua esposa, e que ele não havia planejado nada daquilo. Ao final, os dois casais foram ovacionados. A entrada realmente havia sido uma surpresa. Os jornalistas correspondentes da Casa Branca, que cobriam o evento com o ar entediado enquanto Jill falava sobre menopausa, ficaram ouriçados e se aglomeraram para registrar a fala de Biden, demonstrando não terem sido avisados sobre essa agenda. Ao final da celebração democrata, Biden recebeu de improviso um globo reluzente, o tal Clinton Global Citizen Award. Eram 17h46 em Nova York.
Enquanto a plateia digeria o frisson, fora do auditório uma confusão acontecia. Lula chegou ao hotel para o evento mas, em razão do reforço de segurança decorrente da presença de Biden, seu staff não teve a entrada autorizada. O petista levava assessores, um tradutor e sua própria equipe de seguranças. Como um dos seguranças americanos parecia exaltado diante da insistência para que Lula entrasse com sua equipe, o presidente brasileiro decidiu dar meia volta e ir embora dali. Houve truculência em sua abordagem (não dirigida ao presidente, mas ao staff), segundo dois presentes ouvidos pela piauí.
A orientação do serviço secreto era para que Lula entrasse, mas ficasse sob a tutela da segurança do evento, que era composta por agentes do governo americano e terceirizados, que não tinham qualquer contato com sua segurança oficial. Um dos terceirizados ouvidos pela piauí contou que eles não são avisados antecipadamente de nada, e disse só ter sabido que Biden estava ali depois que o presidente americano subiu ao palco. Sobre a presença de um outro chefe de Estado no local (o presidente do Brasil), o segurança disse também não ter sido avisado, mesma resposta que a piauí ouviu de outros quatro terceirizados no andar em que ocorreu o evento. O pedido para que um presidente fique sem o suporte de sua segurança é considerado ofensivo pela diplomacia.
O desconforto foi ainda pior porque a equipe de segurança de Lula fez visitas ao local nos dias anteriores, o que é praxe nesse tipo de evento. Eles fazem e refazem o caminho do presidente para organizar a logística e detectar problemas. Numa das visitas, a Fundação Clinton foi questionada pela equipe sobre a possibilidade de Biden aparecer, mas negou que isso fosse ocorrer. “Tudo o que havia sido acertado para a chegada e para a comitiva não funcionou como previsto”, disse à piauí um dos membros da equipe brasileira.
Um agente do serviço secreto que conversou com a reportagem no mesmo andar onde tudo havia ocorrido disse não ter visto incidente nenhum. A piauí procurou a Fundação Clinton no local. Cerca de quinze pessoas foram questionadas, mas disseram não saber do que se tratava. Ao ser abordado, o diretor de comunicação da fundação, Brian Crookstra, disse que a entidade não iria comentar o ocorrido e pediu que a reportagem deixasse o evento. Segundo o governo brasileiro, a Fundação Clinton não havia enviado qualquer pedido de desculpas até a noite de segunda-feira.
O climão no evento completa a lista de incômodos provocados pelos EUA ao Brasil na maratona diplomática.
Embora o governo americano tenha deixado implícito que o Itamaraty mediaria os conflitos com a Venezuela após o golpe de Nicolás Maduro, o departamento de Estado convocou uma reunião para discutir a situação no país vizinho com a Argentina, que teve seu embaixador expulso por Maduro. O governo também não gostou de a Casa Branca ter enviado um funcionário de segundo escalão do governo americano para a reunião em prol da democracia convocada pelo Brasil na ONU, à qual comparecerão, entre outros, Emmanuel Macron, presidente da França, Pedro Sanchez, premeiro-ministro da Espanha, Gabriel Boric, presidente do Chile, e Gustavo Petro, presidente da Colômbia.