Uma vida separa o Lula de 2010, quando disse que “a questão do clima é delicada porque o mundo é redondo”, do Lula de 2022, que participou da COP 27, a Conferência das Nações Unidas sobre o clima. Tratado no Egito ora como chefe de Estado, antes mesmo de assumir a cadeira, ora como estrela do rock, o presidente eleito levou para a Cúpula do Clima um discurso maduro, alinhado com nosso tempo e com mensagens claras, duras e necessárias para fora e para dentro do Brasil.
Claro que cumprir o prometido são outros quinhentos. Porém, mesmo como convidado, e não chefe de delegação, Lula é a grande personagem dessa conferência.
A partir do resultado das eleições, estava claro que o Brasil regressaria rapidamente à normalidade da diplomacia, começando pelo campo climático, no qual era referência até 2018. Noruega e Alemanha precisaram de somente dois dias para liberar o Fundo Amazônia, doação voltada a ações contra o desmatamento e a valorização da floresta que foi suspensa após ataques do ex-ministro Ricardo “passando a boiada” Salles. Boa parte das mensagens de felicitações de outros líderes mundiais à vitória das eleições citou o tema.
Na COP 27, Lula respondeu: “Quero dizer que o Brasil está de volta.” Com isso, prepara o retorno do país sul-americano à mesa dos adultos, que ocupava desde a Rio 92, a Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente na qual surgiu a Convenção do Clima. Justiça seja feita, não seria necessário muito para desbancar o negacionismo aloprado da atual administração federal.
Mas a fala de Lula na COP 27 foi além. Ele e seus assessores aparentemente entenderam, enfim, que o debate climático é um dos grandes “soft powers” do século, e que o Brasil tem a faca e o queijo na mão para assumir o leme desse barco, em vez de ficar na retranca.
Da busca do desmatamento e da degradação florestal zero até 2030 ao incentivo a energias renováveis eólica e solar no Nordeste; da exploração sustentável da biodiversidade para produção de remédios e cosméticos à recuperação de pastos degradados; da criação de um Ministério dos Povos Originários à afirmação de que “o combate à mudança climática terá o mais alto perfil na estrutura do meu governo”, tudo o que foi dito em seu discurso na quarta-feira, dirigido aos atores internacionais, é indicado por especialistas como caminho para uma economia de baixo carbono há uma década. Alguém ali afinal escutou, e incorpora agora como compromisso público.
Grande e precioso destaque foi dado à conexão entre o tema e a desigualdade social e econômica, passando pelo combate à fome e aos riscos altos que recaem sobre as populações mais vulneráveis, no Brasil e no mundo. Essa abordagem fornece a Lula uma plataforma conhecida, em que navega com tranquilidade e na qual pode incluir a pauta climática, que até pouco tempo atrás ainda lhe era estranha.
Rei posto
Há um hiato na liderança política climática no mundo. Entre o fim da era Angela Merkel, a falta de brilho do americano Joe Biden e uma guerra na Ucrânia, que faz os europeus coçarem a mão para religar suas centrais de energia movida a carvão, Lula tem um campo largo para atuar.
No Egito, ele aponta para uma direção: de olho em futuras parcerias, coloca-se como um representante do Sul global, uma classificação mezzo geográfica mezzo política que separa os países ricos daqueles em desenvolvimento. Além disso, ao colocar as pessoas na frente dos números, diferencia-se em uma conferência conduzida por tecnocratas e inundada por lobistas do petróleo e representantes de setores privados.
Lula começa a construir uma rota para os próximos anos, ao anunciar a primeira edição de uma cúpula dos países pan-amazônicos, a ser realizada preferencialmente no ano que vem, e oferecer o Brasil como sede da COP 30, em 2025. Soma-se à presidência do G20, em 2024, e há espaço de destaque suficiente em seu mandato para o futuro presidente manter alta a sua exposição.
O grupo do Sul é continuamente deixado de lado nas discussões climáticas, e neste ano não é diferente. É historicamente menos responsável pelas mudanças climáticas do que as nações desenvolvidas; contudo, é lar da população mais vulnerável aos eventos extremos, que se tornam mais frequentes e intensos a cada dia.
No discurso, o presidente eleito foi direto ao ponto: “Em 2009, os países presentes à COP 15 em Copenhague comprometeram-se em mobilizar 100 bilhões de dólares por ano, a partir de 2020, para ajudar os países menos desenvolvidos a enfrentarem a mudança climática. Esse compromisso não foi e não está sendo cumprido.”
Ele sabe; ele estava lá. Na época, o anúncio voluntário de metas de corte de emissões de gases do efeito estufa para o Brasil, um país emergente, ajudou a criar o constrangimento necessário para que os ricos topassem a criação do fundo.
Além dessa promessa não cumprida, outra grande frustração que se desenha entre as nações menos desenvolvidas é a falta de avanços significativos na agenda de perdas e danos. Grosso modo, é uma forma de apoiar quem mais precisa de ajuda para aguentar o tranco, com recursos financeiros e transferência de tecnologia.
Seria o caso recente do Paquistão. Em agosto, enchentes deixaram 1,5 mil mortos, arrasaram a infraestrutura e a produção rural de parte do país e afetaram 33 milhões de pessoas. Situações como essa têm se tornado mais frequentes, o que demonstra a urgência do fundo compensatório; no entanto, seu estabelecimento está perdido em questões processuais.
“Eu não voltei pra fazer o mesmo que eu já tinha feito, eu voltei pra fazer mais. Por isso, esperem um Lula muito mais cobrador, para que a gente possa fazer o mundo efetivamente mais justo e humanamente melhor para todos nós”, disse o brasileiro na COP 27.
O recado ecoou forte entre a audiência internacional cansada de falar com paredes. Mas, tal qual em um casamento, questões financeiras têm o potencial de implodir os mais apaixonados casais após a lua de mel.
Mesmo quem mais paga, como alguns países europeus, precisam ser mais ambiciosos. Outras grandes economias, como a americana, fornecem pílulas de dinheiro aqui e ali, mas sem um comprometimento continuado. Entre o Sul global, há diversos produtores de carvão, óleo e gás que lutam para manter suas divisas, mesmo que recaiam sobre eles as piores consequências das mudanças climáticas – como a Índia e o próprio Paquistão.
Convencer suas contrapartes do Norte global a cumprir a promessa, enquanto lida com um Sul global fragmentado em discursos e intenções, será uma prova de fogo não só para o carisma de Lula mas também para a diplomacia brasileira nos próximos anos. E, para conseguir que esses países voltem a ouvir o Brasil, é preciso antes recolocar a agenda climática nos eixos em casa.
Peças soltas
Algumas horas antes de seu discurso, Lula participou de um evento com o Consórcio Amazônia Legal na mesma COP 27, em que recebeu uma carta dos nove governadores da região instando uma parceria com a esfera federal pelo desenvolvimento sustentável. Num legado de quatro anos de Bolsonaro, os estados ocuparam um espaço de interlocução internacional sobre a Amazônia, enquanto o governo nacional jogava contra sua preservação e o combate às mudanças climáticas. No encontro, o presidente eleito não somente acolheu o pedido como buscou suavizar arestas com membros do consórcio alinhados com Bolsonaro, dizendo que findas as eleições ele buscará parcerias com todos, incluindo prefeitos.
Tal movimento será sujeito a uma prova e tanto no primeiro ano do novo mandato de Lula. O bolsonarismo é ostensivo em diversos estados da região. Os governadores reeleitos do Acre, Gladson Cameli (PP); do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil); de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil); de Tocantins, Wanderlei Barbosa (Republicanos); de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (União Brasil); e de Roraima, Antonio Denarium (PP), apoiaram Bolsonaro. Por mais que alguns já sinalizem uma tendência ao diálogo, eles têm o suporte de uma base rural que prefere a falta de governança entregue de bandeja pelo atual chefe do Executivo federal.
A ausência do Estado, o estrangulamento das fiscalizações ambientais e os tapinhas nas costas de madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais dados tanto pelo presidente quanto por seus estafetas fizeram com que o desmatamento voltasse a explodir na Amazônia. Entre agosto de 2018 e julho de 2021, a derrubada cresceu 73%. Em 2021, as emissões brasileiras de gases do efeito estufa tiveram a maior alta em dezenove anos.
O desmatamento e as queimadas são a principal fonte de emissão do Brasil, então mostrar serviço em casa começa necessariamente por aqui. Desde a campanha, Lula tem dito que vai atacar de frente a questão, e não somente na Amazônia – uma ótima sinalização, uma vez que biomas igualmente importantes do ponto de vista climático, hídrico e de biodiversidade sofrem igualmente, como o Cerrado e o Pantanal.
O presidente eleito, assim como as ex-ministras do Meio Ambiente Marina Silva e Izabella Teixeira, tem repetido que o Brasil já enfrentou desafio semelhante e com sucesso, reduzindo o desmatamento na Amazônia em 67% nos oito anos anteriores de Lula – e com elevação da produção agropecuária.
De fato, como quebrar o sistema de derrubada ilegal, seguido de queima da floresta, não é mais um segredo. Ações de comando e controle fortes e ostensivas, programas consistentes de embargo e multa a infratores, com rotas para conciliação e conversão em ações ambientais para aqueles que buscarem a legalização, além de fomento a atividades agropecuárias e florestais sustentáveis, inclusive com linhas de crédito próprias a grandes, médios e pequenos produtores, dão resultado. A parcela do agronegócio que visualiza bons e limpos negócios tende a se adaptar rapidamente, a despeito de alguma resistência inicial. A senadora e ex-presidenciável Simone Tebet (MDB), que fez campanha para Lula no segundo turno, tem o potencial de ser um expoente do agro mais aberto ao debate climático.
Porém, o cenário que Lula e a pessoa que ficará no Ministério de Meio Ambiente enfrentarão é substancialmente diferente da primeira passagem do PT por Brasília. Além da resistência política embrenhada em um setor mais retrógrado do agronegócio, que se movimenta alimentado por pitadas de teorias conspiratórias negacionistas , racismo contra indígenas e outras populações tradicionais e empréstimos e subsídios nem sempre ligados às boas práticas socioambientais, uma parte da ilegalidade ocorrida no campo se conectou intrinsecamente a outros crimes.
Grilagem, pesca e extração de madeira ilegais, garimpo, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e corrupção constroem hoje uma rede com conexões múltiplas na Amazônia. Ainda que não sejam novas, elas se fortaleceram a partir do momento em que o Estado brasileiro reduziu seu impacto fiscalizatório na região e fez pouco caso das consequências.
Quebrar esse sistema vai exigir mais do que helicópteros e queima de tratores usados nessas atividades; pede uma integração entre as diferentes forças de segurança – incluindo Ibama, Polícia Federal, Forças Armadas e grupos estaduais – em todo o processo, da inteligência às vias de fato.
Além da óbvia complexidade de desbaratar tais teias criminosas, e por mais que existam servidores sedentos em ir para campo e fazer acontecer em todos os órgãos do governo, primeiro será preciso vencer uma desconfiança mútua interna alimentada nos últimos quatro anos pela fricção ideológica constante do bolsonarismo.
Reconstrução
Outros desafios serão regulamentário e orçamentário. Tal qual ocorreu em outros setores, a área ambiental foi carcomida por dentro durante o governo Bolsonaro, num sistema que a ministra do STF Cármen Lúcia descreveu como “cupinização institucional”. Diversos instrumentos legais fundamentais para avançar a agenda climática foram suspensos ou flexibilizados; recursos se tornaram escassos ou congelados. Reconstruir o que foi destruído deve ser uma das primeiras ações desse mandato.
Em reunião com a sociedade civil presente em seu último dia na COP 27, Lula incluiu ações contra o desmatamento na já anunciada quebra do teto de gastos em caso de ações de interesse social. O rombo pode ser menor caso seja aprovada, no Congresso Nacional, a retirada de contribuições internacionais para fins ambientais específicos, como é o caso do fundo de adaptação que Lula quer cobrar no âmbito internacional. O Fundo Amazônia, que hoje tem 3,2 bilhões de reais congelados, também entraria nessa leva – até o atual vice, general Hamilton Mourão, buscou essa saída.
Por fim, há outro desafio a ser enfrentado: a história do PT no campo ambiental. Houve grandes avanços, de fato, nos quatorze anos em que o partido esteve no poder, começando pelo já citado sucesso no controle do desmatamento na Amazônia e o primeiro leilão para fontes eólicas. Mas houve também notórias ações que jogaram contra a agenda climática brasileira. A construção da hidrelétrica de Belo Monte, injustificada tecnicamente e com imensos passivos socioambientais; a sanha desenvolvimentista ligada à exploração do pré-sal com pouco debate sobre uma transição energética para outras fontes renováveis; a aprovação do novo Código Florestal, que anistiou desmatamentos ilegais e enfraqueceu a principal lei ambiental brasileira, são exemplos ainda vivos do que acontece quando números ficam à frente dos impactos.
Lula precisará ser, em solo nacional, o líder das pessoas reais que ele vendeu na COP 27, dando à segurança alimentar, hídrica e ambiental o mesmo grau de importância que o crescimento econômico com equilíbrio fiscal. Esse é um dos grandes desafios dos líderes deste século: equilibrar necessidades com vistas não somente no presente, mas num futuro que ele próprio não vai usufruir.
Serão somente quatro anos para o presidente eleito decidir qual legado deixará para o clima e para a história. Mas, caramba, como é bom conversar sobre isso novamente no Brasil.