Por que o Supremo Tribunal Federal está decidindo, novamente, sobre a liberdade e a elegibilidade do ex-presidente Lula? Há uma resposta técnica para explicar o debate atual e sua diferença em relação a decisões anteriores. Contudo, esse tipo de explicação, embora relevante, esclarece apenas parte do que se procura saber. Ela precisa ser complementada por outra interpretação que explique por que todo caso envolvendo o ex-presidente no STF parece gerar uma complexidade ímpar – tanto nas decisões que lhe foram favoráveis quanto nas contrárias. É preciso explicar por qual razão o Supremo parece se perder em um labirinto construído por seus próprios ministros toda vez que julga esses casos.
Em vários momentos, ao decidir sobre Lula, o STF causou surpresa tanto na comunidade política – devido aos resultados – quanto na comunidade jurídica – por suas justificativas técnicas. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando o ministro Gilmar Mendes anulou a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, em 2016. O mesmo ocorreu quando Cármen Lúcia, então presidente do Supremo, optou por discutir a constitucionalidade da chamada prisão em segunda instância ao analisar o habeas corpus de Lula, o que acabou gerando idas e vindas do Tribunal em torno do assunto. Foi assim também no caso da entrevista de Lula à Folha de S.Paulo às vésperas do segundo turno de 2018 – quando, pela primeira vez desde 1988, segundo levantamento inédito do Supremo em Pauta, o presidente do STF entendeu que poderia suspender a decisão monocrática de outro ministro. Todos esses casos contêm excepcionalidades demais para serem detalhadas em um único artigo. Por esse motivo, causaram enorme desgaste à reputação do Supremo e transmitiram a percepção de seletividade e politização do Tribunal.
Algo semelhante ocorreu com as recentes decisões tomadas em benefício de Lula. A decisão do ministro Edson Fachin que declarou a incompetência da 13ª Vara de Curitiba para julgar o caso do tríplex do Guarujá se baseou em uma orientação fixada em 2015 pelo STF. Ali, foram estabelecidos os limites do que poderia ou não ser julgado pela Lava Jato. A regra, porém, só foi observada anos depois de Lula ter sido preso e tornado inelegível, o que afetou de maneira irreversível a campanha de 2018. A perspectiva técnica não fornece ferramentas para explicar o movimento de Fachin. A decisão foi considerada por muitos juristas como uma tentativa de preservar o processo contra Lula, na medida em que buscou inviabilizar o julgamento da suspeição de Moro. Isso porque o reconhecimento da suspeição torna inviável o aproveitamento das provas e atos processuais conduzidos por Moro. Um novo processo, caso seja aberto, precisaria começar tudo do zero.
Opondo-se a Fachin, o ministro Gilmar Mendes – na qualidade de presidente da Segunda Turma do STF e de ministro que havia paralisado o julgamento de suspeição de Moro desde 2018 por um pedido de vista – recolocou o caso em julgamento no dia seguinte à decisão de seu colega. A Segunda Turma declarou a suspeição de Moro, contando com o voto surpreendente de Cármen Lúcia, que nos últimos anos se mostrou uma entusiasta da Operação Lava Jato no Tribunal. Quando o julgamento da suspeição já havia começado, o Ministério Público recorreu da decisão do ministro Fachin, que por sua vez a remeteu ao plenário a deliberação sobre a incompetência da Vara de Curitiba. Além disso, os onze ministros teriam que decidir se a Segunda Turma realmente poderia declarar a suspeição de Moro caso a incompetência fosse reconhecida.
No plenário, a maioria dos ministros entendeu que Fachin acertou ao declarar a incompetência da Vara de Curitiba e que não era possível revisitar o julgamento já realizado pela Segunda Turma. Todo esse processo manteve a decisão tal como estava antes de ser remetida ao plenário, mas serviu para consumir três dias de sessões recheadas de acusações recíprocas entre os ministros e manter o Supremo no centro do debate político. O julgamento da suspeição de Moro acabou sendo interrompido por um pedido de vista do ministro Marco Aurélio – muito embora já houvesse uma maioria formada, àquela altura –, e tudo acabou com um bate-boca acirrado entre os ministros. Muita complexidade e um desgaste difícil de traduzir.
Mas o que explica tanta excepcionalidade do STF em relação a Lula? Por que o Tribunal, que foi tão veloz em evitar sua nomeação como ministro e tirá-lo da eleição de 2018, agora toma decisões que restauram sua elegibilidade, tornando inviável a instauração e conclusão de um novo processo (em razão da preclusão)? Em nome de que valor o Supremo se expõe com tanta frequência a situações que facilitam com que seja acusado de seletividade, de politização e de fomentar a insegurança jurídica? Durante algum tempo, os casos penais podiam ser lidos pela lógica de oposição entre ministros que apoiavam a Lava Jato e aqueles que criticavam seus excessos. Hoje, no entanto, essa lente redutora não parece dar conta de uma descrição adequada.
Entre 2015 e 2017 o STF forneceu apoio unânime à Operação. Entre 2017 e 2018, especialmente após o falecimento do ministro Teori Zavascki, criou-se uma cisão no Tribunal. No plenário, prevalecia a posição lavajatista, enquanto na Segunda Turma a República de Curitiba enfrentava alguns reveses. De 2019 em diante, o cenário se transformou: a Lava Jato passou a sofrer uma série de derrotas tanto na Segunda Turma quanto no plenário. Alguém poderia concluir, a partir disso, que a elegibilidade de Lula decorre simplesmente de uma prevalência dos críticos do lavajatismo. Mas não: os ministros envolvidos na anulação do processo do ex-presidente faziam parte do grupo que, até pouco tempo atrás, respaldava a Lava Jato. É o caso dos ministros Edson Fachin (que decidiu pela incompetência da Vara de Curitiba), Cármen Lúcia (que proferiu o voto decisivo em favor da suspeição de Moro) e Rosa Weber (que votou pela impossibilidade de o plenário reverter o julgamento da Segunda Turma sobre o ex-juiz).
Sendo assim, enquanto a prevalência do lavajatismo no STF explica a excepcionalidade das decisões que prejudicaram Lula entre 2016 e 2018, a simples derrocada da Operação não ajuda a entender as recentes decisões que favoreceram o petista. As placas tectônicas do Tribunal se movimentaram, mas ainda não está claro se esse novo cenário é um retorno à normalidade pré-Lava Jato ou se os ministros estão engajados em uma nova agenda.
Se o vaivém da liberação de Lula for um exemplo dessa nova agenda, o que podemos esperar daqui em diante é que o Supremo siga afundando cada vez mais no buraco em que o lavajatismo o deixou. O STF segue no campo de ataque, e os ministros continuam catimbando em uma disputa fratricida. Mesmo com toda a experiência dos últimos anos, eles parecem sempre dispostos a desperdiçar a reputação que suas decisões mais técnicas lhes conferem. Se o labirinto que foi criado para manter Lula preso continuar sendo utilizado contra outros alvos, é provável que, ao final, quem acabe preso nesse labirinto seja o próprio Supremo.