O Parque da Cidade, em Belém, já estava tomado por um clima de fim de festa na noite de sábado, 22 de novembro. Diplomatas de dezenas de países discutiam as últimas minúcias do texto final da COP30, depois de treze dias de rascunhos, negociações e lobbies diversos. O resultado foi divulgado por volta das nove da noite. Quem esperava uma tomada de posição mais contundente contra os combustíveis fósseis se frustrou. A transição “justa, ordenada e equitativa” rumo a um novo modelo energético, anunciada na COP28, em Dubai, e postergada na COP29, em Baku, ficou para depois.
A má notícia vinha sendo cozinhada desde o dia anterior. Foi quando veio à tona, pela primeira vez, um rascunho do texto final que não previa o fim da dependência dos combustíveis fósseis, principais causadores do aquecimento global. O lamento foi geral entres os ambientalistas, embora a notícia não tenha sido exatamente uma surpresa. “Nós temos uma doença no planeta, que é a crise climática. Sabemos quem causa essa doença, que são os combustíveis fósseis. Precisamos atacar quem causa a doença, senão nunca teremos a cura”, disse Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.
O papel dos combustíveis fósseis na crise climática vem sendo demonstrado desde o século XIX. Em 1856, a cientista americana Eunice Foote comprovou, com experimentos, que o gás carbônico se aquecia mais do que outros gases quando exposto à luz do Sol. Concluiu, logicamente, que uma maior concentração de CO₂ na atmosfera poderia alterar o clima no planeta. Em 1896, o químico sueco Svante Arrhenius publicou um artigo na revista científica Philosophical Magazine and Journal of Science alertando que a Terra poderia ficar mais quente se as emissões de gás carbônico não parassem de crescer.
Um século de conhecimento acumulado ainda não foi suficiente para que as grandes potências se comprometam a frear a queima de carvão, petróleo e gás. Embora tenha acabado sem grandes resoluções, no entanto, a COP30 foi marcada por algumas vitórias políticas – ou ao menos simbólicas – de quem defende a transição para um mundo menos poluente. O Brasil, em especial, se destacou como líder desse grupo.
A principal contribuição brasileira foi propor a articulação de um mapa do caminho (roadmap, na expressão em inglês) para que os países superem gradualmente a dependência dos combustíveis fósseis. Ainda não foi possível elaborar um roteiro com metas e políticas bem delineadas para financiar a transição energética, mas o número de países que apoiou a elaboração do documento foi surpreendente. “O que começou com um único país [o Brasil] pedindo um roteiro para eliminar os combustíveis fósseis virou uma coalizão de quase noventa países”, comentou, animado, Ilan Zugman, diretor para América Latina e Caribe da 350.org, uma ONG ambientalista sediada nos Estados Unidos.
A tentativa do Brasil de convencer os países a elaborar o mapa do caminho, acompanhada pela piauí durante os treze dias de evento, é ilustrativa da resistência que um projeto dessa natureza ainda enfrenta em fóruns multilaterais. Por outro lado, sinaliza uma mobilização crescente na comunidade internacional. A Colômbia, insatisfeita com a lentidão da conversa em Belém, anunciou a realização de uma conferência em abril de 2026, na cidade de Santa Marta, para discutir o fim dos combustíveis fósseis. O evento é paralelo à programação oficial da ONU e, por isso, tem potencial político limitado. Ainda assim, foi uma novidade bem recebida durante a conferência. “O momento é imparável”, celebrou Zugman.
A primeira menção ao mapa do caminho foi feita por Lula, no discurso de abertura da Cúpula de Líderes. O evento, realizado no fim de semana anterior ao início das COPs, reúne chefes de Estado e serve para dar impulso político às negociações técnicas entre os países. Lula, que defende a exploração de petróleo na Foz do Amazonas apesar dos evidentes riscos à fauna e à flora, encarnou seu lado ambientalista ao discursar diante dos pares, em 6 de novembro. “Precisamos de mapas do caminho para, de forma justa e planejada, reverter o desmatamento, superar a dependência dos combustíveis fósseis e mobilizar os recursos necessários para esses objetivos”, afirmou o presidente brasileiro.
Essa parte do discurso pegou de surpresa ambientalistas – que não esperavam de Lula um aceno tão contundente – e até mesmo diplomatas, que nos preparativos para a conferência defendiam que o Brasil adotasse uma postura mais conciliadora. O anúncio se materializou, a partir dali, em negociações diplomáticas. O objetivo era angariar apoio o suficiente para que a maioria dos países aceitasse a inclusão de um mapa do caminho no texto final da COP30. Caso isso acontecesse, o que Belém entregaria seria o anúncio da criação de um grupo de trabalho encarregado de elaborar esse roteiro, com a chancela de todos os países. A parte mais cabeluda ficaria para as próximas COPs, com a negociação de prazos, tipos de estratégia para a transição energética, a definição dos primeiros países a pô-la em prática e os meios de financiamento. A articulação brasileira passou a ser chamada por um nome meio em português, meio em inglês: “Mutirão call for a fossil fuel roadmap.”
Já no segundo dia da conferência, Coreia do Sul, Geórgia, Liechtenstein, México, Mônaco, Suíça e Colômbia toparam a ideia. No terceiro dia, foi a vez de potências como Alemanha, França e Reino Unido, além da Ailac – a Associação Independente da América Latina e do Caribe, um grupo para negociações climáticas composto por Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e Peru. Uma surpresa, no mesmo dia, foi a entrada da União Europeia, que, independentemente da posição individual dos países que a compõem, aderiu ao mutirão. “A entrada deles dá outro peso para o documento”, disse uma diplomata que estava na mesa de negociações e comemorou a notícia com os colegas.
No dia seguinte, a Blue Zona (Zona Azul), espaço onde ocorriam as tratativas oficiais, foi tomada por uma DR. Os países insulares, que correm risco existencial com o aquecimento do planeta e o aumento do nível dos mares, fizeram um pronunciamento conjunto. Agradeceram a boa vontade dos diplomatas presentes, mas demonstraram ceticismo com o mapa do caminho, dizendo que há anos vivem uma “relação tóxica” com países poluentes, como China e Estados Unidos. Os representantes da Noruega, pegando carona na brincadeira, disseram que o planeta anda mesmo precisando de terapia. Achando aquilo tudo um exagero, os diplomatas chineses cortaram o barato: disseram que, além de terapia, era preciso yoga e massagem, sugerindo que os diplomatas precisavam se acalmar.
O mutirão, apesar dos obstáculos, avançou um pouco mais. Obteve a adesão da Aliança dos Pequenos Estados Insulares (Aosis), coalizão que reúne 39 países, e da Austrália, conhecida até então por barrar negociações em conferências climáticas. “A Austrália, dos países ricos, é talvez o menos ambicioso de todos, mas ainda é um país que não aceita fazer uma conversa justa e honesta sobre carvão. Costumam bloquear muito a linguagem dos textos sobre combustíveis fósseis. O apoio ao roadmap foi muito surpreendente”, disse Cinthia Leone, coordenadora de diplomacia climática da ONG ambientalista ClimaInfo. Na sexta-feira, 15 de novembro, Suécia, Portugal e Mongólia também se uniram ao mutirão.
Os dias seguintes transcorreram sem novidades, até que, na terça-feira (18), uma das salas reservadas para coletivas de imprensa na Blue Zone foi tomada por um agito repentino. Jornalistas e fotógrafos rapidamente ocuparam todos os 312 assentos disponíveis. Só a imprensa podia entrar. Representantes de governos europeus foram barrados, e funcionários da ONU tiveram de sair da sala para dar mais espaço aos repórteres. O motivo? A divulgação oficial da aliança pelo mapa do caminho, com 82 países signatários.
Estavam presentes ministros de grandes potências, como Reino Unido e França, e de países vulneráveis, como Serra Leoa e Ilhas Marshall. “Queremos um resultado para esta COP longe dos combustíveis fósseis, mas de uma maneira justa e inclusiva”, discursou Carsten Schneider, ministro do Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear da Alemanha. Naquela manhã, o clima ficou ainda mais animado quando, no disse-me-disse da COP, começou a circular a informação de que Lula retornaria a Belém no dia seguinte. Ao receber essa notícia, até os mais céticos ambientalistas e diplomatas abriam um sorriso. Lula havia deixado a cidade no dia 7 e não era certo que voltaria.
“As negociações estão indo bem, o presidente até voltou. Ele não teria voltado se as discussões não estivessem andando”, disse à piauí, reservadamente, aquela mesma diplomata brasileira que comemorou a adesão da União Europeia. Outras pessoas, no entanto, fizeram uma interpretação menos otimista. Um empresário do setor de metais que acompanhou de perto as reuniões ponderou que, se foi necessário recorrer ao presidente para destravar o mapa, “é porque alguma coisa não está indo bem para os diplomatas”.
No dia seguinte, o principal corredor do pavilhão que abrigou a COP amanheceu agitado com a chegada de Lula. “O presidente foi categórico: precisamos de um mapa do caminho para zerar o desmatamento e para reduzir nossa dependência dos combustíveis fósseis”, disse a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, em uma nova coletiva naquela manhã de quarta-feira (19). Lula chegou cedo ao Parque da Cidade e só foi embora no fim do dia. Conseguiu novas adesões de países africanos e europeus, e reuniu-se com representantes brasileiros do setor de minérios e construção civil. Ao longo da COP, o presidente cavou para si o papel de protagonista, ao ponto de alguns empresários se referirem ao mapa do caminho por outro nome: “O chamado de Lula.”
O chamado, no entanto, deve muito a Marina, que apresentou em Belém estudos elaborados sobre a transição energética, municiando de argumentos o mutirão. Janja também teve papel importante. Um integrante do gabinete de Lula relatou à piauí, em condição de anonimato, que a primeira-dama foi fundamental para convencer o presidente a assumir uma postura mais incisiva na COP. “A Janja foi convencida por A + B, pela Marina, de que as crises ambientais são fruto da desigualdade”, explicou o assessor palaciano.
A empolgação, no entanto, começou a murchar na quinta-feira (20), quando países como Arábia Saudita, Rússia, Índia, China e Nigéria se manifestaram enfaticamente contra o mapa do caminho. Os árabes, como esperado, alegaram que o petróleo é a base de sua economia e que frear a produção é algo impensável. Os chineses até se comprometeram a reduzir a queima de combustíveis fósseis, mas se recusaram a formalizar a promessa num documento. Cinthia Leone, do ClimaInfo, participou das reuniões como observadora. Naquela tarde, relatou à piauí que o clima estava azedando. “Os países, principalmente a China, estão dizendo que foram traídos. ‘Vocês estão trazendo coisas que a gente nunca decidiu conversar aqui. A gente não tem autorização do nosso país para negociar isso.’”
A discussão estava atingindo o clímax quando foi interrompida por um incêndio na Blue Zone, por volta das 14 horas. O fogo foi controlado em cerca de 6 minutos e ninguém ficou ferido, mas as atividades no pavilhão foram suspensas até as oito da noite. Quando enfim puderam ser retomadas, os países já haviam descartado a inclusão do mapa do caminho no texto final. “O incêndio aconteceu num momento muito decisivo”, lamentou Leone. “A gente não sabe como esse texto foi enfraquecido [durante a paralisação], nem onde aconteceram as reuniões. Não havia observadores da sociedade civil, então não tem como saber.”
O receio de Leone não é sem fundamento. A coalizão Kick Big Polluters Out (“expulse os grandes poluidores”), que reúne mais de quatrocentas organizações ambientalistas de todo o mundo, contabilizou a presença de 1.600 lobistas na COP30 – um dos maiores índices desde que a contagem começou a ser feita, em 1995. São considerados lobistas os representantes de empresas de óleo e gás, de associações do setor, de mineradoras, e políticos reconhecidamente engajados nessa agenda. Alguns deles receberam um tipo de credencial que lhes dava acesso a reuniões a portas fechadas durante as negociações.
Não se sabe o quanto o lobby foi efetivo. O fato é que, na madrugada de sexta-feira (19), foi publicado um novo rascunho do texto final da COP sem menção ao mapa do caminho – na verdade, sem menção a qualquer política para frear a queima de combustíveis poluentes. “Apesar do apelo de quase noventa nações por um roteiro formal para o abandono dos combustíveis fósseis, os governos cederam à pressão dos países produtores de combustíveis fósseis e da indústria”, lamentou Bill Hare, CEO e cientista sênior da Climate Analytics, um instituto baseado em Berlim que promove pesquisas sobre o clima.
O Pacote de Belém, como foi intitulado o texto final da COP30, é composto de 29 tópicos aprovados de forma unânime por 195 países. Inclui alguns pequenos avanços, como a criação de um mecanismo com o objetivo de dar suporte técnico e apoio internacional para que os países façam sua “transição justa” rumo às fontes renováveis de energia. “Os três objetivos que a gente colocou foram: multilateralismo, acelerar a implementação e assegurar que as pessoas pudessem ser escutadas”, disse Ana Toni, diretora-executiva da COP30. “Quando a gente olha a implementação, eu acho que foi extremamente exitosa.” Para Toni, o fato de o mapa do caminho não ter entrado no Pacote de Belém não significa que o esforço diplomático tenha sido em vão. “A gente conseguiu fazer um debate político fundamental sobre combustíveis fósseis, o que não houve nas últimas COPs.”
Na plenária de encerramento, no sábado (22), Marina Silva foi aplaudida por mais de três minutos, uma cena inédita nas conferências. Em seu discurso, lamentou não ter havido consenso sobre o mapa do caminho, mas disse que ele se fortaleceu. “A transição justa ganhou corpo e voz”, disse a ministra. “Cento e vinte duas partes [países ou grupos de países] apresentaram compromissos em reduzir emissões até 2035. Faltam outras partes, mas esses resultados são ganhos fundamentais para o multilateralismo climático.”
Na última segunda-feira (8), Lula assinou uma determinação para que os ministérios de Minas e Energia, Fazenda, Meio Ambiente e Casa Civil elaborem em até 60 dias uma proposta de roteiro para a transição energética do Brasil. Enquanto isso, o embaixador André Corrêa do Lago, que permanece na presidência da COP30 até a próxima conferência, no ano que vem, está montando três mapas do caminho: um para traçar o fim dos combustíveis fósseis, outro para frear e reverter o desmatamento e um último para financiar ações climáticas em países em desenvolvimento. Os dois primeiros já estão bem adiantados. A piauí perguntou a Corrêa do Lago se o roteiro dos combustíveis fósseis é o mais desafiador dos três. “Não, mas é o mais politizado”, ele respondeu. A tarefa de desatar esse nó caberá aos participantes da COP31, que será sediada na Turquia.