Sábado cinzento em Copacabana. Comércio fechado em grande parte; entrada no shopping através de porta baixa e estreita, aberta na chapa de ferro abaixada do portão; cuidado para não bater a cabeça ao passar pela abertura; Papai Noel de tamanho natural balançando a cabeça e o braço direito em saudação; descida ao subsolo quase deserto; poucos espectadores para a sessão na sala de 87 lugares; ninguém para conferir o ingresso; poltronas desconfortáveis – circunstâncias adequadas para estados de melancolia, pouco convidativas, porém, para embarcar em uma bela aventura.
O propósito singelo da incursão à paisagem desoladora no fim de semana era assistir a uma sessão de pré-estreia de Lumière! A Aventura Começa, de Thierry Frémaux, a única das duas programadas em local e horário convenientes ao interessado. Além dele, outros doze espectadores ocuparam quase 15% da sala.
Sucessor de Bertrand Tavernier à frente do Instituto Lumière, em Lyon, e diretor do Festival de Cannes desde 2007, para Frémaux o período de invenção do cinema chega ao fim com o Cinematógrafo Lumière e a história do cinema começa com A Saída dos Operários da Fábrica Lumière, cujo título original, La Sortie des Usines Lumière, não especifica quem sai, omitindo referência aos trabalhadores. Se o evento técnico conclusivo e o inaugural forem mesmo os indicados por Frémaux, é preciso não esquecer que a linguagem do cinema apenas começava a ser criada.
Em fevereiro de 1895 os irmãos Auguste e Louis Lumière, o primeiro com 32 anos e o mais moço com 30, registram a patente do Cinematógrafo Lumière, sua câmera a manivela que filma, revela e projeta na tela uma sucessão de imagens estáticas, cada uma quase idêntica à seguinte, que criam a ilusão de reproduzirem o movimento.
Informação incluída na antologia de 1996 e repetida na mais recente é terem sido filmadas mais duas versões da A Saída dos Operários da Fábrica Lumière, além da que foi feita em 9 de março de 1895. Uma na primavera ou no outono, o que é possível deduzir pela maneira como as mulheres estão vestidas; outra filmada no verão, estação do ano indicada pelas roupas mais leves que os trabalhadores vestem. Essa terceira versão foi considerada o primeiro filme durante noventa anos, até que A Saída dos Operários da Fábrica Lumière inaugural foi encontrado em Lyon, em 1985.
Durante quase quarenta anos, fiéis ao compromisso assumido quando jovens, os irmãos Lumière assinaram juntos os resultados de suas pesquisas, independentemente de quem as havia, de fato, desenvolvido e levado a termo, criando dessa maneira a marca Irmãos Luimière. Somente quando suas respectivas atividades se diferenciaram nitidamente é que cada um passou a assinar seus respectivos trabalho individualmente. Auguste abandonou a química fotográfica em favor da biologia, fisiologia e patologia; Louis levou adiante a pesquisa fotográfica, além de ter solucionado problemas de mecânica, ótica e acústica.
Apenas treze dias depois de filmado, A Saída dos Operários da Fábrica Lumière foi exibido na Sociedade de Incentivo à Indústria Nacional como complemento a uma conferência de Louis, apenas para exemplificar o desenvolvimento da indústria fotográfica. A conferência foi muito apreciada por sua clareza, mas o grande sucesso, “tão imediato quanto inesperado”, foi a projeção da “vista animada”, informa Jacques Rittaud-Hutinet, na edição da correspondência de Auguste e Louis Lumière (Paris: Cahiers du cinéma, 1994). Depois da sessão, Auguste e Louis encarregaram o engenheiro e industrial Jules Carpentier da construção de 25 câmeras.
Nem Louis, nem Auguste, assistiram à sessão inaugural do cinematógrafo em 28 de dezembro. Ambos estavam em Lyon. O fotógrafo Antoine Lumière (1840-1911), pai deles, fez as honras da casa, recebendo os convidados, entre os quais Georges Méliès e Robert-Houdin, com ajuda do seu antigo colaborador Clément Maurice, também fotógrafo. Foi Maurice quem apresentou o cinetoscópio de Thomas Alva Edison a Antoine, descoberta que teria instigado a invenção do Cinematógrafo Lumière.
Em 24 de agosto de 1891, Edison requereu a patente do cinetoscópio – dispositivo dotado de um visor individual através do qual se via imagens filmadas ampliadas por uma lupa –, mas só em outubro do ano seguinte começaram a ser preparadas as primeiras exibições comerciais que ocorreram na Exposição Colombiana Mundial, em Chicago, inaugurada em maio de 1893.
Que tenha nascido em obediência a uma recomendação paterna sugere que o cinema traga de origem um viés de docilidade perante o poder comumente esquecido. Mas parece haver certa dose de fantasia na narração de Os Primeiros Filmes dos Irmãos Lumière. O mecânico chefe dos Lumière, Charles Moisson, relatou que “durante o verão de 1894, o pai Lumière chegou no meu escritório, onde eu estava com Louis, e tirou do bolso um pedaço de fita de cinetoscópio (de cerca de 30 cm de comprimento) e disse textualmente a Louis: ‘Eis o que você deveria fazer, porque Edison vende isso a preços loucos e Werner, o concessionário, quer fazer fitas aqui, na França, para tê-las por custo menor.’”
O relato de Moisson sugere postura de subordinação do pai Lumière ao cinetoscópio de Edison. O Cinematógrafo Lumière, porém, rompeu com o cinetoscópio ao tornar possível projeções públicas coletivas, pelo menos enquanto não surgiram os dispositivos que ressuscitaram a visão individual de filmes.
Um dos grandes méritos da nova coletânea realizada por Frémaux que a diferencia da anterior, editada por ele mesmo há pouco mais de vinte anos, é devolver parte da filmografia de Lumière às telas dos cinemas. Após décadas de ausência, 108 filmes realizados entre 1895 e 1905 podem ser assistidos em condições técnicas excepcionais, graças não só ao restauro digital em 4k, mas também à reprodução fiel do formato original. O título Lumière! A Aventura Começa sugere que haverá A Aventura Continua, incluindo outros tantos filmes do conjunto de 1422 que compõem o legado de Lumière, incluindo os filmados pelos cinegrafistas que viajaram mundo afora a seu serviço. Dependendo da velocidade do giro da manivela no momento da filmagem, a duração de 1’50” dos filmes varia um pouco para mais ou para menos.
Segundo Frémaux, “percebe-se que eles fizeram isso, isso, isso e isso. Mas por quê? Porque eles não tinham receitas. Eles eram abertos. Eles propunham hipóteses, faziam perguntas. É por isso que o deles é um cinema moderno. A modernidade está em fazer perguntas, não em dar respostas” (íntegra da entrevista disponível aqui).