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    O educador e ativista Jota Marques: “Não deixamos em nenhum momento de realizar as ações, independentemente de tudo que está contra a gente, seja a fome, seja o vírus, seja o tiro” - Foto: André Edgard

depoimento

Mãe porteira, filho educador

Jovem atua em projetos de educação popular que incluem biblioteca e pré-vestibular comunitários em favela da Zona Oeste do Rio

Jota Marques | 07 maio 2021_17h09
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No dia 30 de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou o Fies, o programa de crédito estudantil, e disse que o filho de seu porteiro tirou zero nas provas, mas conseguiu entrar na universidade. Para Jota Marques, de 29 anos, filho de uma porteira de um edifício na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, e estudante de pedagogia na Uerj, a fala do ministro teve efeito contrário: “Recebi como mais um empurrão para continuar na resistência, pela minha família e pelo fortalecimento de outras crianças e adolescentes que também são filhos de porteiros.” O rapaz vive na Cidade de Deus, comunidade pobre na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e lá criou o Coletivo Marginal, que realiza ações sociais e educativas no bairro. O grupo já distribuiu mais de 10 mil cestas básicas, tem um pré-vestibular comunitário e está montando uma biblioteca e uma cozinha solidária.

Em depoimento a Amanda Gorziza

 

Nasci em Cruzeiro do Oeste, uma cidade pequenininha no interior do Paraná. Saí de lá criança com os meus pais, que buscavam melhores condições de trabalho e moradia. Passamos por Maringá, no Paraná, Vitória, no Espírito Santo, Limeira, Campinas e São Paulo, até chegar ao Rio de Janeiro. Nesse meio tempo, meus pais se separaram. Ter nascido em uma cidade rural e hoje viver em uma outra cidade dentro do Rio de Janeiro, que é a Cidade de Deus, na Zona Oeste, é uma mudança bem grande, principalmente pelo tamanho do bairro. A Cidade de Deus tem cerca de 60 mil moradores, e o município em que nasci tem 21 mil.

Vim para o Rio de mochila nas costas, cerca de oito ou nove anos atrás, para morar com a minha mãe. Ela é porteira de um prédio na Barra da Tijuca. Desde criança, quando a gente passou por essas outras cidades, eu já acompanhava os meus pais no trabalho. Eu olhava para o mundo pensando: “eu preciso gerar soluções.” Meus pais sempre pensaram comigo que a educação podia acontecer fora do ambiente escolar formal. Também foram educadores, mesmo que fora de sala de aula. O meu pai, quando morava no interior do Paraná, ajudou a construir o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O projeto existe até hoje.

Como tenho TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), tive muitas dificuldades na escola. Quando tive a oportunidade de dar aula, não hesitei. Comecei dando aula em projetos sociais, primeiro sendo aluno, depois cobrindo professores quando faltavam. Mas eu sempre esbarrava no fato de não ter uma licenciatura. 

O Brasil te obriga a esse lugar. Quem é você para dar aula, se você não tem uma licenciatura? A educação popular provoca uma sensação diferente. A educação de rua me mostrou a possibilidade de aprender e compartilhar conhecimentos com outras práticas. Minha entrada na universidade é uma tentativa de deixar dentro da academia o legado da educação popular. Tenho 29 anos e atualmente estou estudando Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faz quase doze anos que trabalho com educação popular. Em 2019, fui eleito conselheiro tutelar. O Conselho Tutelar é encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da infância e da adolescência. Fui o mais jovem conselheiro eleito na cidade do Rio. Tem sido uma luta democratizar a informação sobre o conselho e o acesso aos mecanismos de garantia de direitos de crianças e adolescentes.

Sou idealizador e fundador do Coletivo Marginal, que surgiu em 2015. Desenvolvemos projetos de educação popular na Cidade de Deus e um dos mais recentes é a biblioteca do bairro. Em meados de janeiro, começamos uma movimentação para arrecadar livros. Sentíamos falta de uma biblioteca que não estivesse presa dentro de uma instituição ou que contasse mais as histórias que de fato dão conta da nossa existência como povo brasileiro. Pensamos em construir um local aberto a todos os moradores, não só da Cidade de Deus, mas também do Rio de Janeiro. Fizemos uma movimentação tão grande que conseguimos doações de livros de Felipe Neto, Patricia Pillar e Felipe Castanhari. Hoje estamos com um acervo de mais ou menos 13 mil obras. Antes mesmo de abrir, a Biblioteca da Cidade de Deus já é uma das maiores do bairro. 

Jota Marques com os livros doados à Biblioteca da Cidade de Deus – Foto: Yasmim Guastini

 

Em função da pandemia, o ritmo de trabalho na biblioteca é bem devagar, até porque nós temos outras linhas de atuação a que a realidade nos obriga. Não adianta a gente dar livros para as pessoas lerem com a barriga vazia. O Coletivo se mantém no papel de cumprir com aquilo que acredita como transformação do mundo, que é a educação, mas não perde a urgência do momento. Estamos construindo a biblioteca e montando uma cozinha solidária. Distribuímos mais de 10 mil cestas básicas. Temos também um pré-vestibular comunitário, que conta com 90 alunos e 120 professores voluntários. Retomamos as aulas na modalidade online recentemente, no dia 1º de maio.

Durante a pandemia, também distribuímos mais de 500 mil reais em um projeto de distribuição de renda. Há um momento em que a cesta básica não supre as necessidades das famílias. Então, pensamos no cartão “quebra-galho”, não só para alimentar as pessoas, mas para poder dar um pouco de autonomia financeira para elas. Conseguimos um apoio da ONG BrazilFoundation e foram produzidos mais de 3,5 mil cartões com carga única no valor de 100 reais. Eles foram distribuídos em cerca de quinze favelas no Rio de Janeiro, com a parceria de outros coletivos.

 

No dia 30 de abril, ouvi a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, na reunião do Conselho de Saúde Complementar. Ele disse que o Fies é “bolsa para todo mundo” e que o filho do porteiro “tirou zero na prova” e conseguiu financiamento. Recebi isso como mais um empurrão para continuar na resistência, pela minha família e pelo fortalecimento de outras crianças e adolescentes que são filhos de porteiros. Nós temos um lugar no mundo e esse lugar precisa ser reconhecido. Enquanto trabalhador de favela, filho de porteira da Barra da Tijuca que eu sou, sei que essa cidade não existe sem a gente. Se a minha mãe ou eu não nos levantamos de manhã cedo para trabalhar, essa cidade para. Se os porteiros não forem trabalhar, a cidade para. Eu ouço a fala do Paulo Guedes e sinto que eles têm muito medo da gente. Penso em todas as ações que já fizemos dentro da Cidade de Deus, sem apoio do Estado ou da prefeitura, com iniciativas independentes, captando recursos de um a um. Não deixamos em nenhum momento de realizar as ações, independentemente de tudo que está contra a gente, seja a fome, seja o vírus, seja o tiro.

Quando eu olho para o que nós fazemos no nosso pequeno coletivo na Cidade de Deus, eu me pergunto: “e se nós estivéssemos no lugar do Paulo Guedes?” Se nós fazemos tanto com absolutamente nada, imagina se tivéssemos tudo na mão. Eu olho para a minha mãe e sinto muito orgulho. Ela não parou de trabalhar nem um dia desde o início da pandemia. É sempre nós por nós.

Aqui no coletivo buscamos soluções para problemas que não fomos nós que geramos. Estamos lutando para que as crianças possam simplesmente ser crianças e que elas não precisem ser o que eu fui na infância. O direito de viver é uma militância de que não abrimos mão. Temos que continuar vivendo porque, se a gente abrir espaço, eles nos matam.

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