Há um sentido implícito de velocidade na percepção dos acordes. Mesmo quando são tocados isoladamente, sem encadeamento e sem ritmo, eles indicam atmosferas que aludem a um grau maior ou menor de movimento, a um estado de ampliação ou de decréscimo das forças vitais. E tudo isso é dado pela percepção do contexto, pela maneira como captamos as relações entre as notas que compõem os acordes. Dentre tais relações, a mais determinante é aquela entre o primeiro e o terceiro graus. Será ela a determinar o “sobrenome” do acorde: maior ou menor. Vem daí um fato que sempre me intrigou: que os acordes menores fossem percebidos como sendo mais lentos do que os acordes maiores. Isso transparece de modo especialmente claro nas modulações de um mesmo acorde. Ainda que não haja mudança real no andamento da música, a transição do mesmo acorde de maior para menor (ou vice-versa) altera nosso senso de velocidade. Quando um mesmo acorde se torna menor, sua terça recuando meio tom, temos a sensação de uma redução de velocidade, mesmo que o andamento rítmico permaneça exatamente o mesmo. Tudo se passa como se a densidade sonora houvesse sido alterada, criando um contexto de movimentação mais pesada e dificultosa.
Adotando certos procedimentos e conceitos da psicologia cognitiva (o de qualia, por exemplo), alguns ramos da musicologia vêm tentando esclarecer essa impressão subjetiva, e dificilmente traduzível em palavras, causada pela música – essa misteriosa resposta afetiva induzida pela organização dos sons no tempo e no espaço. O musicólogo norte-americano David Huron escreveu um livro brilhante, Sweet Anticipation: Music and the Psychology of Expectation, no qual lança mão da psicologia evolutiva e de diversos estudos estatísticos de condicionamento cultural para compreender o que está na base de nossas respostas emocionais à música. O autor retoma, mais de cinquenta anos depois, e com maior rigor científico, as reflexões pioneiras do compositor e filósofo Leonard B. Meyer, também norte-americano, em seu clássico Emotion and Meaning in Music.
O substrato teórico do estudo de Meyer é a teoria da Gestalt, o modo como a mente organiza e interage com as formas percebidas pelos sentidos. Aplicando a Gestalt à experiência musical, Meyer elabora uma teoria inédita do escapadiço significado musical. No século XIX, ao analisar a obra de Wagner, Baudelaire já assinalava que a música tinha a capacidade de “provocar ideias análogas em cérebros diferentes”. Retomando a ideia do poeta francês, Meyer irá escrever sobre os “complexos conotativos” da música, que geram uma rede associativa de ideias genéricas, porém análogas, que se tornam particularizadas na experiência individual do ouvinte. Assim, uma melodia menor com andamento lento tende a gerar ideias e imagens associadas à tristeza, ao outono, à melancolia, à falta, à noite, a estados psíquicos de maior quietude e introspecção, etc.; ou seja, ideias análogas em cérebros diferentes. Por sua vez, Huron parte da visão inovadora de Meyer para conjugá-la com os resultados de extensas pesquisas de percepção musical realizadas nas últimas décadas. Foi ao ler Huron que tomei ciência desse estranho fenômeno da velocidade dos acordes.
Se o acorde menor é mais lento, torna-se mais facilmente associado a estados afetivos mais recolhidos, mais quietos e introspectivos. Há muito o modo menor é vinculado ao sentimento de tristeza. Pelo recurso da modulação é possível colocá-lo lado a lado com o modo maior, ampliando o sentido de contraste entre os dois. Podemos assistir, no interior da canção, a um acorde maior que se torna menor. O sentimento é o de redução da luminosidade, de perda de ímpeto, de encolhimento. Se o sentido for inverso, um acorde menor que se torna maior, o sentimento é também inverso: expansão, ousadia, brilho. Os compositores de canção sempre jogaram com esse contraste, criando delicadas interações entre o significado verbal da letra e o significado implícito da música. Cole Porter, por exemplo, soube como poucos valer-se desse recurso.
No universo da música popular, o clichê do acorde maior que se torna menor no quarto grau da escala, antes de retornar à tônica (a cadência plagal IV-iv-I), tem seu modelo primordial na clássica balada Everytime We Say Goodbye, lançada em 1944. A beleza do movimento harmônico se deve à condução interna das vozes dos acordes, que cria uma descida macia, de três semitons consecutivos – a terça maior do primeiro acorde (IV) se torna uma terça menor (iv) e finalmente se acomoda como a quinta do acorde de tônica (I). O mais impressionante, no entanto, é o grau de consciência com o qual Cole Porter aplica tal procedimento: a passagem do acorde maior para o menor vem colada com o verso “but how strange the change from major to minor”. A letra não apenas comenta o que está acontecendo no plano musical (verbalizando-o, trazendo-o ao “plano da consciência”, por assim dizer), em sua “estranha mudança” do maior para o menor, mas também tece uma relação direta dessa mudança com o estado afetivo do narrador, uma vez que ficamos sabendo no verso seguinte que ela acontece toda vez que os amantes se despedem um do outro – “every time we say goodbye”.
Na música popular, Porter foi também o pioneiro da justaposição, no interior da mesma canção, dos tons maior e menor dentro da mesma tonalidade – as modulações paralelas. Costumava brincar com as atmosferas e climas dos dois modos, criando desorientação no ouvinte, num jogo contínuo de luz e sombra, entusiasmo e melancolia. Em Night and Day, dó maior e dó menor são continuamente colocados um sobre o outro, ensejando uma série de associações poético-musicais entre o claro “dia” e a escura “noite”, entre a velocidade do modo maior e a languidez do menor. Poucas músicas dominam tão bem o poder atmosférico das modulações paralelas, criando, além do mais, uma letra que comenta, passo a passo, os acontecimentos musicais. O domínio e a consciência da interação entre matéria poética e matéria musical são totais. Eu poderia falar da categoria de Cole Porter, mas categoria é um termo que soa absolutamente redundante quando se fala dele.