Em sua autobiografia, Ingmar Bergman conta que ao ir à Califórnia para afastar-se das repercussões relativas aos seus problemas com o fisco, quase morreu de calor. E, que, pouco depois de sua chegada, ao receber um telefonema de Barbra Streisand convidando-o para ir a uma festinha em sua casa e, sobretudo, para não esquecer de trazer sua sunga, olhou para a mulher e disse: “Faça as malas já. Estamos voltando para a ilha de Fårö”. Foi assim que, no dia seguinte, no lugar de daiquiris a bordo de um colchão inflável e da companhia da hollywoodiana, Bergman estava a bordo de um avião, aliviado e feliz por ir ter com fiscais da Receita Federal sueca .
O destemido bávaro Werner Herzog vive na Califórnia. Diferentemente de Bergman, que nunca se interessou muito por aquilo que se passava abaixo demais do Círculo Polar Ártico, Herzog preparou-se por décadas, enfrentando vulcões em erupção, desertos, a polícia africana, as corredeiras do rio Urubamba e a ira de Klaus Kinski. Assim, o sol californiano e as águas cloradas de piscinas estelares hoje devem lhe parecer café pequeno.
Para quem descobriu o cinema sem concessões nem enfeites de Herzog na década de 1970, seu flerte com o American way of life pode causar certa perplexidade. Mais que um flerte, Herzog já fez um filme com Nicolas Cage (Vício Frenético) e está escrevendo e dirigindo a série de documentários On death row, uma produção da Creative Differences que estreou este ano no canal Investigation Discovery. Além disso, Herzog acabou de filmar um show de rock do The Killers, uma banda de moços com cara de banho tomado que fariam Jim Morrison uivar de desgosto. A produção, patrocinada com alarde marqueteiro pela American Express, foi transmitida na web, como manda o Zeitgeist vigente. Contudo, a participação de Herzog como vilão no ainda inédito filme de Tom Cruise, Jack Reacher, é o que há de causar mais espanto entre os fãs da velha guarda.
Porém, engana-se quem pensa que Herzog descobriu a América recentemente. Na aula magna que proferiu em 22 de novembro, no Rio, por ocasião do Festival de Cine Fundación Mapfre – 4+1 (transmitida ao vivo pela internet), Herzog mostrou um trecho de um de seus mais belos filmes, Stroszek, de 1977. Se o olhar cinematográfico de Wim Wenders sobre os Estados Unidos teve como filtro o próprio cinema norte-americano, Herzog preferiu fazer a descoberta desse vasto e idiossincrático país por meio do olhar puro de Bruno S., que encarna Stroszek. À imagem construída e idealizada, preferiu a imagem espontânea e, na medida do possível, original. Stroszek tem sobre os Estados Unidos o mesmo olhar que Kaspar Hauser (também vivido por Bruno S.) tem sobre o mundo ao sair de seu quarto escuro.
Na aula de quinta-feira, Herzog começou incitando embevecidos ouvintes a roubarem câmeras para fazerem filmes, forjarem assinaturas e falsificarem documentos, andarem a pé pelo mundo e evitarem escolas de cinema como a peste. Já vi esse número algumas vezes (uma delas comentada neste blog), e, por um momento, temi que fosse ouvir um discurso requentado, que Bergman tivesse razão, que o excesso de sol californiano estivesse começando a afetar a capacidade de Herzog de fazer sinapses.
Ledo engano: fora algumas frases de efeito, que, aliás, de fato causam o efeito esperado junto ao público de jovens adoradores, Herzog se doou e encantou da mesma maneira que o vi fazer no seminário de sua Rogue Film School, em Londres, em 2011. Por duas horas (meia hora além do previsto), falou de som, um de seus elementos preferidos em cinema; falou sobre a câmera que dança como numa coreografia e sobre edição; falou sobre seu mais recente livro preferido, e sobre a importância da poesia e da paixão na literatura, no cinema e em tudo que fazemos. Até citou seu maior equívoco como diretor, um documentário de curta-metragem que jamais divulgará, por ter, a seu ver, transposto uma barreira ética. Para não perder a mão, lançou algumas frases de efeito novas como, “Storyboards são instrumentos para covardes”. Mas, quando afirmou tentar ser um bom soldado do cinema, o Herzog californiano deu definitivamente lugar ao Herzog de Aguirre, Fitzcarraldo, Fata Morgana e tantos outros filmes extraordinários.
Ao término do seminário de Londres, ele evaporou no ar, a caminho do Qatar para buscar financiamento para seus filmes. Sempre de olho no próximo projeto, deve ter repetido o feito com igual competência no Rio. Herzog é um dos únicos diretores de cinema independentes do mundo, o que não é pouca coisa. Obviamente, não existe essa divisão entre Herzog pré e pós-Califórnia. Há um diretor que precisa encontrar meios para continuar a realizar seus filmes, e, seminários, aulas magnas e shows de rock são uma forma de se fazer presente e promover projetos.
É pouco provável que Bergman contracenasse com um galã insosso em um blockbuster. Vinte e quatro anos mais velho que Herzog, pertence a uma aristocracia cinematográfica que foi poupada do massacre que a televisão – e agora a internet – infligem ao cinema. Herzog pertence à geração de órfãos do pós-guerra do cinema alemão. Não é um aristocrata, tampouco uma estrela de cinema. Como disse tão bem, é um soldado do cinema, e, por esse motivo, sobrevive.
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