Quem deixa um filme em segredo, para só ser assistido após sua morte pela posteridade, demonstra crer na importância de seu próprio legado. Se, além disso, falta senso do ridículo ao crente, quando o filme vier a público, o resultado corre sério risco de ser desastroso.
Manoel de Oliveira (1908-2015) parece consciente desse perigo ao filmar Visita ou memórias e confissões, em 1981, quando está com 73 anos. Na sua narração em voz off, ele admite, logo na abertura, que “talvez não devesse ter feito um filme assim”. E completa: “Mas está feito.” A hesitação quanto ao resultado da abordagem auto-biográfica não o impede de considerar que, uma vez concluído, Visita ou memórias e confissões é um fato consumado que deve ser oferecido aos pósteros.
Curioso é que a consagração de Oliveira fora de Portugal ainda era recente quando filmou Visita ou memórias e confissões. Foi só a partir de Amor de perdição, em 1978, filme considerado uma obra-prima por alguns, que festivais e parte da crítica internacional tomou conhecimento de Oliveira, até então uma celebridade nacional, e passou a tratá-lo como novo mestre do cinema.
Adaptação fiel para a tela do romance de Camilo Castelo Branco, publicado em 1862, Amor de perdição estreou primeiro na televisão portuguesa em seis episódios antes de ser lançado no cinema, em 1979. Até então, Oliveira realizara sete filmes em 48 anos de carreira, inaugurada em 1931 com o documentário Douro, faina fluvial.
Ao fazer Visita ou memórias e confissões, porém, no mesmo ano em que estreou Francisca, seu oitavo filme, Oliveira já parece imbuído da sua própria grandeza. O que não poderia prever é que nas quatro décadas seguintes se tornaria, progressivamente, um cineasta prolífico, realizando vinte e nove filmes, e passando a ser considerado pelo crítico Jonathan Rosenbaum, da revista Filmcomment, um “modernista clássico” – cineasta maior que Rosenbaum compara a Thelonious Monk, pertencentes ambos a uma categoria à parte “inventada por eles mesmos”.
Em Visita ou memórias e confissões, Oliveira alterna perspectivas, uma em que articula ficção e documentário, outra na qual o documental predomina, sem excluir a encenação. Na “visita”, a casa em que morou 40 anos é filmada ainda mobiliada e arrumada, mas aparentando estar desabitada. Ouvem-se o diálogo em off e os passos de um casal de visitantes, sem que sejam vistos em cena. A câmera subjetiva reproduz o ponto de vista deles, aproxima-se do “porteiro da casa”, que é uma palmeira, passa pela porta de entrada, percorre salas do andar térreo, vai e volta, sobe a escada até o segundo andar aonde encontra Oliveira escrevendo à máquina a “planificação” (plano de filmagem) de um filme. Ele interrompe o trabalho, dirige-se diretamente à câmera e se apresenta: “Eu sou Manoel de Oliveira…”, passando a rememorar sua trajetória biográfica e a história da casa que já deixou de ser propriedade sua. Foi vendida a um particular “para resgatar a hipoteca feita para pagar dívidas”, esclarece. Tudo ao som de trechos pausados do Concerto para Piano nº 4 em Sol Maior, Op 58, de Beethoven.
Na “visita”, a conversa do casal em estilo literário, como não podia deixar de ser em se tratando de um filme de Oliveira, contrapõem-se ao registro documental da casa; nas “memórias e confissões”, narradas por ele na primeira pessoa, além da sua presença diante da camera, Oliveira opera um projetor 16mm no qual exibe filmes e fotos de família.
O relato memorialístico, por vezes em tom de lamento, em geral é nostálgico, com momentos autocomplacentes, e por vezes beira o ridículo. Esse é o caso, em particular, da sequência em que Oliveira desfia nomes de ilustres amigos, admiradores e colaboradores que o visitaram ao longo dos anos, como se o rol lhe conferisse algum prestígio especial.
Além do trauma recente de ter sido forçado a abandonar a casa onde criou filhos e netos, outros dois compõem o relato de Oliveira. Ele descreve os dez dias em que ficou preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE, polícia política do Estado Novo português, que atuou de 1945 a 1969, sem esclarecer, porém, as razões da prisão, nem denunciar sua arbitrariedade. Na ocasião, foi humilhado ao ser obrigado a ficar despido diante dos seus carcereiros. Outro abalo foi a ocupação pelos trabalhadores, no 25 de abril de 1974, da fábrica de implementos agrícolas que herdou do pai, deixando-o “em grandes dificuldades financeiras”, agravadas quando as instalações lhe foram devolvidas em ruínas, sem o maquinário.
Pouco tempo é dedicado em Visita ou memórias e confissões ao cinema – atividade que ocupou Oliveira intensamente, ao menos a partir dos seus 70 anos. Ele faz, porém, uma profissão de fé que viria a repetir em entrevistas nos anos seguintes: “O mais ilusório é o mais verdadeiro”, diz ele. E completa: “A ficção é a verdadeira realidade do cinema.” É o único momento do filme em que vemos o casal de visitantes, silhuetados, distanciando-se da câmera. Oliveira diria, de forma inequívoca, que “o documentário não tinha mais nenhum interesse para ele”.
Oliveira não poderia imaginar que viveria ainda 34 anos, quase um terço de sua existência, depois de filmar Visita ou memórias e confissões. De qualquer modo, ciente de que o filme só seria visto após sua morte, depois de fotos de família, a última imagem é uma foto dele com cerca de 3 anos. No belo fecho, ele conclui dizendo “E, sumo-me.”
Manoel de Oliveira tem a grandeza de correr o risco de fazer um filme como Visita ou memórias e confissões, no qual se expõe, derrapa às vezes, mas no final, mesmo ferido, acaba vitorioso.