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questões de gênero

A mão boba não existe

Silêncio e risadas perseguem mulheres que, como deputada paulista, sofrem importunação ou assédio sexual

Samira Bueno e Arielle Sagrillo | 23 dez 2020_07h20
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Imaginem a cena: vários homens estão reunidos no local de trabalho quando, de repente, um deles se dirige até o colega e toca seus genitais. As cenas que se seguem seriam, naturalmente, constrangedoras e as reações, exaltadas. Afinal, qual a razão para que um colega julgue natural tocar as partes íntimas de outro no ambiente profissional?

Agora imaginemos uma cena quase idêntica: vários homens estão reunidos no local de trabalho quando, de repente, um deles se dirige até uma colega, mulher, e toca seus seios. Ela tenta reagir, mas seu pedido de ajuda é abafado pela inércia, pelo silêncio e pelas risadas de quem está no entorno. 

Foi exatamente essa situação que a deputada Isadora Martinatti Penna (Psol) vivenciou na última semana durante sessão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.  Isa Penna, como é mais conhecida, é uma advogada trabalhista, formada pela Pontifícia Universidade Católica, casada e deputada estadual em seu primeiro mandato. Isa Penna é também uma mulher jovem, de 29 anos, ativista, feminista, que defende pautas antirracistas e de direitos das mulheres e da população LGBTQI. Símbolo da renovação do campo progressista na política, ousou ocupar um espaço que, historicamente, é quase exclusivamente reservado a homens brancos de meia-idade.

Episódios como o vivido pela deputada acontecem diariamente. . Apenas no ano passado, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo registrou 4.435 boletins de ocorrência por importunação sexual e outras 727 ocorrências de assédio sexual. Se somarmos os dois tipos penais, o total chega a 5.162 ocorrências de crimes consumados – ao menos 14 por dia.

A pergunta que fica é: por que, neste caso, a situação não causa indignação?

 

A deputada é uma das dezoito mulheres eleitas para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 2018. Embora o Parlamento estadual tenha 94 assentos, a desigualdade racial e de gênero impera. Mulheres ocupam apenas 19% das cadeiras da Assembleia, que conta também com a sub-representação de negros, que somam apenas dez parlamentares (menos de 11%). Curiosamente, a mesma casa possui 31 milionários em cargos de deputado, o que é, no mínimo, revelador dos interesses ali representados.

Desde que assumiu o cargo, Isa tem sido uma importante voz na denúncia das violências sofridas por mulheres na política e em espaços de poder, mas o ocorrido nesta semana escancarou para o país algumas das muitas formas como essas violências se manifestam. No dia 16 de dezembro, a deputada estava conversando com o presidente da Casa, deputado Cauê Macris (PSDB), quando o também deputado Fernando Cury (Cidadania) se aproximou por trás e, aproveitando-se da oportunidade, colocou suas mãos na altura dos seios de Penna. O ato, registrado em vídeo, além de mostrar claramente o momento em que a violência acontece, chama atenção pela naturalidade com que o agressor conduz o ocorrido.

Fernando Cury (Cidadania) – Foto: Carol Jacob/Alesp

 

Apesar de reprovável, seu comportamento é coerente com o que se observa de outros homens acusados de alguma forma de violência sexual: em primeiro lugar, tenta-se negar o ato cometido (seja em termos de sua ocorrência, de sua gravidade ou de seus efeitos). Não sendo possível, tenta-se justificar as motivações para ter agido de tal maneira. Em ambos os casos, cria-se uma narrativa para responsabilizar a vítima (seja pela “denúncia caluniosa” ou pelo ato sofrido).

Nas próprias palavras de Fernando Cury:

“se a deputada Isa Penna se sentiu ofendida com o abraço que eu lhe dei, eu peço, de início, desculpa por isso. Desculpa se eu a constrangi. Desculpa se eu tentei, como faço com diversas colegas aqui, abraçar e estar próximo. Se com esse gesto eu a constrangi e ela se sentiu ofendida, peço desculpas. (…) Queria dizer para vocês que não fiz por mal nada de errado. Meu comportamento com a deputada Isa Penna é o comportamento que tenho com cada um dos deputados aqui. Com os colegas deputados, as colegas deputadas, com os assessores e com as assessoras, com a Polícia Militar feminina aqui. De cumprimentar, de abraçar, de beijar, de estar junto. A minha chefe de gabinete é uma mulher. Eu tenho assessoras mulheres aqui, no escritório em Botucatu. Eu nunca ia fazer isso na frente de cem deputados. Quantas câmeras tem aqui na Assembleia Legislativa? Estava na frente do presidente. Pelo amor de Deus. Eu não fiz nada disso. Não fiz nada de errado. O que eu fiz foi abraçar. Vocês viram o vídeo.”

 

O episódio, agora conhecido nacionalmente, dá pistas do que significa ser mulher no Brasil. Afinal, se um deputado se sentiu na liberdade de apalpar o seio de uma colega, que ocupa exatamente a mesma função que ele – e no meio de uma sessão no plenário da Assembleia – é possível imaginarmos o que vivem as milhões de mulheres brasileiras que não têm, a seu favor, gravações, testemunhas ou alguma forma de poder. Exemplos não faltam: mulheres cotidianamente violadas quando estão a caminho do trabalho. Mulheres assediadas no exercício de suas funções – conforme publicado recentemente por esta revista, quando as denúncias de Dani Calabresa contra o seu então superior hierárquico Marcius Melhem vieram à tona. Mulheres agredidas dentro e fora de suas casas. Por homens conhecidos ou não. 

No caso da deputada Isa Penna, especificamente, para além das imagens e do comportamento do agressor, as reações dos espectadores deixam evidente a lógica cruel e machista dessa Casa (que deveria ser) do Povo: conforme observado nas gravações, todos os presentes permaneceram em seus lugares originais, não esboçando nenhuma reação além de olhares e risadas. Isso se aplica, inclusive, ao deputado Cauê Macris (PSDB), que presidia a sessão.

E aqui uma dinâmica muito específica de gênero se faz presente: enquanto mulheres são ensinadas a calarem sobre as violações sofridas (o que faz com que muitas delas nunca denunciem, ou demorem muito a denunciar, as agressões sofridas), homens silenciam ou riem (d)as violências cometidas por eles e por seus pares. Seja para garantirem a unidade do grupo, seja para garantirem a manutenção do seu lugar de poder.

Isso porque, no processo de construção da masculinidade, homens são constantemente convocados a provarem sua virilidade. Isso significa que não basta atingir o lugar de “homem de verdade”. É preciso sustentar esse status entre seus pares. Seja através do sexo, do status, do poder, do sucesso profissional, do dinheiro, da violência ou de todos estes fatores juntos.

Além do exposto, como relatado pela coluna Painel da Folha, após o episódio, ao menos quinze parlamentares teriam se deslocado ao gabinete de Cury para prestar solidariedade, minimizar a importância do ocorrido e desqualificar a deputada Isa Penna. O deputado Delegado Olim (PP) chegou a afirmar, na ocasião, que Cury é “um cara gente boa” e que apenas teria sido “infeliz”. Já Isa Penna “é complicada”.

O deputado em questão é egresso da Polícia Civil: instituição pioneira na criação das Delegacias de Defesa da Mulher ainda nos anos 1980. Por isso, não é suficiente dizer que sua declaração foi infeliz. Mais do que isso, sua declaração nos dá indícios do calvário enfrentado por vítimas de violência doméstica ou sexual que se propõem a procurar ajuda.

Até aí, nada de novo na terra em que um juiz afirma em audiência online, sem nenhum constrangimento, que “se tem Lei Maria da Penha contra a mãe [sic], eu não ‘tô’ nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”.

Como afirma a promotora de justiça Silvia Chakian, não se trata aqui de defender o uso indiscriminado do Direito Penal, que deveria ser o último recurso de controle em uma sociedade democrática. Mas quando homens se sentem no direito de tocar suas colegas de trabalho, ou ejacular nos corpos femininos que se atrevem a ocupar os espaços públicos, é preciso que se reconsiderem as escolhas que temos feito para cuidar das mulheres. E que a punição – administrativa e penal – seja exemplar.

O ataque sofrido pela parlamentar consta do Código Penal brasileiro (artigo 215-A) como importunação sexual: “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, podendo, o autor de tal ato, receber pena de reclusão de 1 a 5 anos.

Atos dessa natureza precisam deixar de ser naturalizados e não podem contar com a complacência dos demais parlamentares. A presidente da Comissão de Ética, Maria Lúcia Amary (PSDB), protocolou ação contra Cury no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Alesp. Esperamos que a comissão se reúna extraordinariamente ainda este ano e não deixe o episódio cair no esquecimento. A Casa do Povo tem a oportunidade de mostrar que está firmemente comprometida com o enfrentamento à violência contra as mulheres.

Enquanto isso, a desigualdade entre homens e mulheres permanece como um dos nossos desafios civilizatórios. A violência se faz presente. Os constrangimentos são evidentes. O que faremos com isso?

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