No meio do expediente, o gerente médico do Hospital Municipal de Salvador (HMS), José Mário Teles, precisou subir ao heliponto, no terraço do prédio, para tomar um ar. Era abril de 2021, o pior mês da Covid no Brasil, quando foram registradas mais de 82 mil mortes. No HMS não era diferente. O hospital tinha cada vez mais pacientes internados com a doença, e as mortes se sucediam. A vista do heliporto deu algum conforto ao gerente. O hospital está praticamente dentro de uma floresta que se mistura com algumas construções populares e do horizonte se vê o mar de Patamares, bairro vizinho a Itapuã.
“Era um dia de sol. Fiquei impressionado com a beleza e com a paz daquele lugar”, lembra Teles. O movimento de aeronaves era raro: em média oito pousos por mês, trazendo pacientes para realizar procedimentos de trombólise para AVC isquêmico, quando é preciso ser atendido dentro de uma janela de tempo muito rápida para que o tratamento faça efeito. “Esse lugar lindo estava ocioso. Eu queria usar aquilo a favor dos nossos pacientes”, diz. Naquele dia nascia o projeto “Passeios que curam”. A ideia era oferecer para pacientes internados por muito tempo, alguns com doenças em estágio terminal, a mesma experiência de alívio e conforto que o médico teve naqueles minutos, olhando para o horizonte no terraço do hospital.
A logística de levar um paciente internado para o terraço do hospital era um desafio: desde o transporte dos aparelhos, da maca até os cilindros de oxigênio, a ação mobilizaria uma equipe para que tudo acontecesse sem prejudicar o paciente. “Muitas pessoas do hospital foram contra, mas briguei pela ideia, eu sabia que seria impactante no tratamento”, conta Teles. Já no mês seguinte, em maio de 2021, a primeira paciente, uma jovem de 15 anos, ganhou a vista do heliponto: acompanhada da mãe e da equipe médica, foi levada para assistir ao pôr do sol. A emoção da menina, depois de 72 dias na UTI com uma meningite viral, foi a confirmação: o projeto estava aprovado. “Passeios que curam” seria o ponto de partida de outras ações humanizadoras do hospital.
Em novembro de 2020, o hospital resolveu permitir que os pacientes em isolamento trocassem fotos e mensagens de texto com seus familiares e recebessem visitas virtuais por meio de chamadas de vídeo com tablets e celulares oferecidos pela unidade. A transformação no ânimo e consequentemente na recuperação dos pacientes fez com que toda equipe médica percebesse ali algo que não poderia ser menosprezado: em meio às prescrições de remédios, intervenções cirúrgicas e fisioterapia, pequenas ações de acolhimento deveriam fazer parte do tratamento dos pacientes.
Às 14h30 do dia 7 de junho de 2023, uma quarta-feira, o metálico carro-bandeja circula pelas enfermarias do HMS. No cardápio, hambúrgueres, pizzas, pudins, omeletes e cachorro-quente, lanches que fogem à alimentação padrão e regrada de um hospital. Os lanches, divididos em pratinhos cuidadosamente preparados e separados pelos nutricionistas do hospital, são embalados com plástico filme e posicionados na bandeja. No carrinho se espreme uma pequena caixa de som. A playlist animada abre com Tempo de alegria, de Ivete Sangalo. Estava tudo pronto para começar o “Dia do Desejo”, no Hospital Municipal de Salvador.
Cleidiane Bispo, apelidada de “Fadinha”, comanda o carrinho. Fantasiada com pompons rosa no ombro e um arco de corações na cabeça, a copeira entra nos quartos com os lanches escolhidos pelos pacientes. Raimundo Conceição Santos, de 65 anos, pediu cachorro-quente e disse que adora esses momentos em que o hospital oferece uma comida diferente. “É muito bom, dá uma animada aqui no pessoal”, conta. Torcedor fanático do Vitória, disse que não perde nenhum jogo do rubro-negro baiano, mas nunca foi ao Barradão, estádio do clube. Quando saísse do hospital era uma das coisas que queria fazer. Apesar de adorar cachorro-quente, Santos confessa: “Estou com saudade mesmo é do meu prato predileto, feijoada de mocotó.”
Iniciado em 2021, poucos dias depois de Teles ter a epifania no heliponto do hospital, o “Dia do Desejo” vai muito além de simplesmente oferecer comidas gostosas. Integra um conjunto de ações inspiradas na proposta “Three Wishes” (Três Desejos) apresentada pela médica canadense Deborah Cook em um congresso sobre medicina intensiva realizado de forma virtual durante a pandemia, e que Teles acompanhou. “A Deborah Cook, pra mim, é a maior referência em cuidados de fim de vida do paciente. Quando ela apresentou o projeto, vi que ia cair como uma luva no nosso hospital”, relembra o gerente.
Professora de medicina na McMaster University, Deborah Cook é médica da UTI do St. Joseph’s Healthcare Hamilton, em Ontario, no Canadá. Desde 2013, o hospital tem o programa dos três desejos, cujo principal objetivo é humanizar o ambiente quando alguém está morrendo na UTI. Teles adotou esse mantra para o HMS. Em meio a números altíssimos de Covid e cada vez mais pacientes internados, decidiu instalar no hospital um programa semelhante, baseado em três pilares fundamentais: humanizar o final da vida do paciente, confortar as famílias e acalentar a equipe médica, que vivia uma rotina pesada durante a pandemia.
O gerente lembra que o desejo que mais lhe marcou aconteceu em 2022, com uma paciente de Goiás em situação terminal. “Essa paciente veio em uma excursão aqui pra Bahia. Ela nunca tinha visto o mar. Logo nos primeiros dias, passou muito mal, foi levada para uma UPA (unidade de pronto-atendimento) e veio para cá. Acharam que era infecção no fígado, mas já era uma doença bem avançada”, relembra. Quando o hospital ofereceu os três desejos à paciente, ela disse que queria ver o mar, o motivo principal de sua ida à Bahia. Estava tudo pronto para levá-la à praia de Patamares, a poucos quilômetros do hospital, porém, no dia do passeio, o quadro dela se agravou. “Não havia condições de sair com ela. Então a levamos pro heliponto. Lá do alto do hospital, ao lado de seu filho e de sua filha, ela viu o mar”, conta. A paciente faleceu três dias depois.
O programa começou apenas com pacientes na UTI, com doenças terminais. Pouco tempo depois, o hospital decidiu estender o projeto para pacientes internados por longos períodos e também os que estavam em cuidados paliativos, já em situação de fim de vida. E instituiu também o “Dia do Desejo”, que acontece uma vez por mês e é voltado para todos os pacientes.
Na tarde daquela quarta-feira, o “Dia do Desejo” inclui a visita de Mick Pet Terapeuta, um filhote de golden retriever de 2 anos. Desfilando com sua roupinha azul e seu crachá de identificação, Mick chega para sua visita quinzenal ao hospital. Começa passeando pelas alas dos adultos e logo depois sobe para onde realmente faz sucesso: a enfermaria pediátrica.
Cicilia Gabrielli, de 4 anos, estava sentada na cama desenhando em seu bloquinho colorido com uma cara fechada, sem esboçar sorriso. Os médicos avisaram que chegaria uma surpresa. Apesar de ter dado entrada há mais de um mês no hospital, ela ainda não tinha participado de nenhuma ação, pois passou a maior parte do tempo na UTI e estava no quarto havia poucos dias. Quando o golden retriever entrou no seu quarto, Cicilia largou o lápis de cor e ficou vidrada no animal. A carinha emburrada foi se transformando em um sorriso. Com a ajuda de uma escada de dois degraus, Mick subiu para ficar mais perto da criança. Dócil como um cachorro de pelúcia, Mick parece sempre esperar os carinhos e os afagos que recebe. Com a ajuda do pai, Cicilia esticou a mão para fazer carinho no cão e em poucos minutos já estava rindo junto dos médicos e do adestrador, Armando Gomes da Silva. “Essas ações são importantes porque distraem as crianças, às vezes fazem com que esqueçam uma dor. Tira um pouco dessa vivência do hospital. Isso é muito legal”, conta Patrícia Silva, mãe de Cicilia.
No quarto em frente ao de Cicília, um choro foi interrompido com a entrada de Mick. Rebeca, de 7 anos, estava com o braço esquerdo enfaixado e com um curativo na mão direita, mas naquele momento não parecia sentir dor alguma. Abraçava, beijava e agarrava o cachorro, que permitia os afagos docilmente, enquanto dava algumas lambidas na criança. “O Mickey parece a Paçoca!”, repetia Rebeca para os médicos, em alusão à sua cachorra. O adestrador prometeu que levaria Mick para visitá-la quando ela saísse do hospital.
O passeio do cão, ou a visita pet, acontece desde outubro de 2022, em uma parceria do HMS com a creche para cachorros Dog Ville. Um dia antes da visita, Mick recebe um banho caprichado, escova os dentes e os pelos. Faz tanto sucesso que o diretor geral do HMS desde 2019, Gustavo Mettig, disse que o hospital vai tentar aumentar a frequência da visita pet: “Sabemos a importância dessa ação e estamos vendo a possibilidade de trazermos um segundo cão, esse da Guarda Municipal, para alternar com o Mick e conseguirmos fazer a visita pet uma vez por semana.”
Entre outras pequenas iniciativas de humanização do tratamento, o HMS instituiu o “prontuário afetivo”. “A ideia é fazer uma ficha falando quem realmente é aquele paciente, não tipo sanguíneo, altura, peso, mas o time para o qual ele torce, o tipo de música que ele gosta de ouvir, o que ele gosta de fazer”, explica. Também há música: o hospital recebe visitas de saxofonistas que tocam para pacientes da UTI e da banda da Guarda Municipal nos eventos do hospital. “Ter todas essas ações e ver esses resultados em um hospital do SUS é muito gratificante”, complementa o diretor. Localizado no bairro Boca da Mata, na região de Cajazeiras, a cerca de 20 km do Centro da capital, o Hospital Municipal de Salvador é administrado pela Santa Casa da Bahia desde sua inauguração, em 4 de abril de 2018. Fica dentro de uma APA (Área de Proteção Ambiental). Cada ala de enfermaria leva o nome de uma árvore nativa da região, como sucupira, candeia, gameleira, jacarandá e imbaúba.
O ”Dia do Desejo” chegava ao fim. Patrícia Santos, internada em decorrência de miastenia gravis (uma doença autoimune caracterizada, entre outros sintomas, pela fraqueza muscular extrema), queria subir ao heliponto. A visita demorou por causa da tarde nublada, ameaçando chuva, mas aconteceu. Durante os 15 minutos que a paciente passou no heliponto, não caiu uma gota de chuva. Era a segunda vez que a paciente, internada havia seis meses, subia ao heliponto. Seu marido, Fabrício Santos, disse que as ações de acolhimento ajudam na recuperação dela. “Ela fica muito feliz, a gente vê a dificuldade do paciente que fica ali internado em um lugar que não tem vento, não tem paisagem, não tem sol, e quando tem essa oportunidade é muito bom.”
Esperando o elevador para descer do heliponto, Teles contou à piauí que, desde o início do programa, houve apenas uma única vez em que ele não conseguiu realizar o último desejo de alguém internado. “O filho da paciente chegou pra mim e disse que a mãe queria fumar um baseado. Eu fiquei naquela de tentar pensar em alguma coisa. Cogitamos pegar um remédio à base de canabidiol, mas não rolou. Esse aí, infelizmente, não deu pra realizar.”